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“VOCÊ NEM IMAGINA” – O amor

“Cada qual sabe amar a seu modo; o modo pouco importa; o essencial é que saiba amar”, escreveu Machado de Assis em “Ressurreição”. Muitos artistas tentaram dar concretude a algo tão abstrato como o amor – alguns com grande êxito; outros, nem tanto. O perigo de recair em vagueza, pieguice e/ou obviedade é inegável. A tarefa é ainda mais difícil quando o público-alvo é o adolescente. O filme original Netflix VOCÊ NEM IMAGINA a executa com maestria.

O amor de que trata o filme é o que nutre a protagonista Ellie Chu por Astrid, sua colega do colégio. Quando Paul, outro colega, também apaixonado por Astrid, pede a ela ajuda para se aproximar da amada, Ellie se depara com enormes conflitos: isso seria errado, mas pode resolver os seus problemas financeiros; pode fazer com que conheça Astrid melhor, mas também pode minar as próprias chances.

(© Netflix / Divulgação)

O amor deve começar, talvez, com uma definição à “fogo que arde sem se ver”. Leah Lewis defende esplendorosamente a sua protagonista; sua naturalidade é tão expansiva que ofusca elementos periféricos (por exemplo, na cena do lago, seu desconforto é tão palpável que tira o foco do cenário mal feito). A admiração que Ellie e Aster compartilham pela literatura é doce como uma fruta madura, é tautologicamente poética. Porém, o amor da ficção pode não lhes servir. Proliferam dúvidas: como saber se já amou? Como saber se a pessoa amada quer um beijo?

O amor não deixa de ser puro se o caminho da sua realização for tortuoso e – por que não? – arenoso. No caso do Paul do mediano Daniel Diemer, essa caminho é de pura neblina. Estaria certa Ellie ao afirmar que não há relacionamento se os dois não têm nada em comum? Ou seria melhor para ele aprender mais sobre o universo em que Aster habita, para ter mais chances com ela? Uma leitura pode ser tediosa para ele, mas amar é se esforçar por quem se ama, não? Ou isso seria fingir? Ele mesmo percebe que existem muitas formas de amor.

O amor pode ser retilíneo como explica o pai de Ellie (interpretado por um convincente Collin Chou): de tão intenso, dispensa um desejo de mudança na pessoa amada. Ela não precisa mudar porque é amada justamente por ser quem e como é. Isso não significa que ela é perfeita. “Você nem imagina” tem diversos defeitos – de continuidade (por que Aster colocou camiseta no lago?), de construção narrativa (o excesso de voice over, a coincidência que permitiu a cena do lago etc.), de atuação (Alexxis Lemire é bem limitada como Aster) -, assim como o (objeto do) amor também pode ter. E isso não elimina beleza alguma.

O amor pode permitir que a solitária Ellie entenda que suas crenças religiosas a tornam solitária – ainda que seja pouco crível tamanha profundidade no diálogo entre adolescentes, a mera reflexão proposta pelo roteiro de Alice Wu merece elogio -, mas também é o amor, o amor por si mesma, que faz com que ela supere o bullying que sofre na escola. Ellie é fascinante porque realmente amável: não se rebaixa aos bullies, não é mesquinha com Paul e consegue ser compreensiva com o pai. Nessa ótica, surgem três (dentre as infinitas) facetas do amor: compaixão, empatia e entendimento.

O amor está nos filmes, como nos clássicos que o pai de Ellie gosta de assistir – a personagem, inclusive, é um dos principais núcleos referentes à imigração, tema tão pujante nos EUA. O amor está nas músicas, como na tocante “Annie’s song (you fill up my senses)”, composta por John Denver na década de 1970 e que é entoada por Aster no primeiro ato, anunciando uma trilha eclética e de bom gosto. O amor está em si, mas também está no outro: Ellie não tem a melhor concepção de moda, o que justifica a ajuda na escolha para um momento especia. Seu figurino é sempre neutro (nas cores e no estilo de vestuário), totalmente diferente das roupas de Aster (com cores quentes e femininas). Se é para amar, que se ame a pessoa como ela é.

O amor não é quantitativo nem qualitativo, é simplesmente amor. Pode ser que Ellie e Paul tenham o mesmo sentimento por Aster. Esse sentimento pode até ser o amor. Mas não é o mesmo amor, porque o amor não é singular. Em tal nível de esclarecimento, não é preciso ser panfletário ideologicamente (o que não seria censurável, dado o preconceito de parcela da sociedade). “Você nem imagina” parte da premissa segundo a qual o público sabe que existem infinitas e igualmente legítimas possibilidades de amar. Nem todas as pessoas são assim – as que não são, não aprenderam o que é o amor. Mas ainda há tempo. Um bom começo pode ser assistindo a este filme.

* Pedro, dedico a presente crítica a você.