“O SILÊNCIO DO PÂNTANO” – Pouco a dizer
“Em algum momento saberemos por que ele mata? Como foi seu passado? Se tem algum trauma?” Essas perguntas são feitas ao protagonista de O SILÊNCIO DO PÂNTANO, um escritor de romances policiais. Tais indagações perpassam em algum nível pelo próprio filme, repleto de decisões que despertam dúvidas quanto à sua razão. A começar pelo personagem principal, a trama acumula lacunas que, ao invés de cativarem pela curiosidade, afastam pela incapacidade de preencher tantos vazios.
Disponibilizado pela Netflix, o suspense espanhol acompanha Q, um ex-jornalista dedicado agora a escrever histórias policiais. Enquanto é respeitado publicamente por muitos fãs, esconde o fato de ser um assassino a sangue frio que utiliza seus crimes reais como conteúdo para seus livros de ficção. Ele conseguia se manter a salvo de qualquer risco até se envolver em um esquema de corrupção e venda de drogas organizado por figuras poderosas e perigosas.
Os primeiros minutos trazem uma construção eficiente da tensão, que pode enganar quanto aos rumos da produção. A indicação da vida dupla do autor é gradualmente revelada por uma trilha sonora e por sombras que, mesmo não possuindo nada exatamente inovador, cumprem o propósito de estabelecer o mistério e quebrar expectativas; conjuntamente, a montagem e a narração em voice over definem uma metalinguagem própria do fazer ficcional baseado na realidade (de modo extremado). Se a tensão encontra alguns outros instantes para surgir – como as cenas de violência realizadas por Falconetti, o guarda-costas do tráfico que sempre empunha a mesma ferramenta como arma -, o exercício metalinguístico se dissipa, deixando a narrativa entre a falta de ritmo, as obviedades dramáticas e brechas na composição do protagonista.
Torna-se difícil se convencer ou empatizar com Q da maneira como se mostra um sujeito psicopata, compulsivo pela morte e tendo uma identidade dupla se pouquíssimo se sabe sobre ele. Para o espectador minimamente ser atraído para seguir a história por seu ponto de vista, o homem precisaria ter camadas, conflitos internos ou um arcabouço dramático mais definido que não deixassem a impressão de alguém unidimensional pouco verossímil. A tentativa de humanizá-lo colocando o irmão Nacho não vai a lugar algum, já que fica vago qualquer embate entre eles e a interação entre Pedro Alonso e Raúl Prieto é incapaz de penetrar fundo na atmosfera tensa sugerida ao redor deles.
Da mesma forma que faltam nuances ao escritor, falta clareza na metáfora geográfica pretendida com o pântano para o personagem. O diretor Marc Vigil inicia o filme com longos planos gerais do local e da natureza próxima e retoma a escolha em outros instantes sem conseguir explorar possibilidades visuais e dramáticas. O silêncio, por vezes existente, até poderia se articular à introspecção misteriosa de Q, porém os ruídos do vento e da revoada de pássaros não se associam com as ocasiões em que o homem cede às emoções – passa-se a sensação de que algo seria comunicado através dessa combinação, mas, sem camadas de personalidade, o encontro entre natureza e indivíduo se perde. Consequentemente, a postura física imponente, o semblante misterioso e a expressão blasé de Pedro Alonso são desperdiçados, em virtude da problemática direção dentro das necessidades do papel e do descompasso criado pelo ator entre seu porte arrogante e a inexpressividade pedida por Q.
A metáfora do pântano também é levada para a caracterização dos antagonistas, participantes da lavagem de dinheiro obtido pela venda de drogas. O simbolismo já é por si só bastante evidente – o pântano como um local apodrecido que oculta no fundo o que é corrompido e desagradável e revela na superfície uma aparência de honestidade e beleza -, contudo o roteiro insiste numa narração em voice over expositiva para evidenciar ainda mais a analogia. Com isso, o trabalho satisfatório de criação das diferentes partes envolvidas na corrupção, suas ligações (traficantes, policiais e ex-político) e as atuações do elenco desse núcleo (especialmente, Carmina Barrios vivendo La Puri como a comandante do tráfico com grande imponência) se contamina por uma veia simbólica mal conduzida e excessivamente didática.
As perguntas iniciais desse texto retiradas de uma cena do próprio filme são respondidas pelo escritor com “não veremos sobre o passado dele” e “ele mata porque simplesmente pode”. Uma resposta absorvida por “O silêncio do pântano“, que não entrega o que seria importante (um protagonista mais bem delineado que possua dilemas internos), oferece simbolismos não tão indispensáveis assim (o cenário do título em conexão com o personagem central e o ambiente corrompido do entorno) e desperdiça elementos de maior potencial (o design de produção da casa absolutamente vazia de Q e o final em aberto pretensamente inteligente). Diferentemente dos resultados do livro ficcional, o filme conquistará poucos fãs.
Um resultado de todos os filmes que já viu.