“A MÁFIA DOS TIGRES” – Mais estranha que a ficção
Partindo da premissa conceitual de documentário como um conjunto de imagens e sons reais (não fictícios) formando uma narrativa, A MÁFIA DOS TIGRES é o ápice de uma realidade documentada tão surreal que mais parece ficção. Conhecida também pelo nome original (“Tiger King”), a minissérie original Netflix fez um sucesso pouco comum para o gênero. Com uma realidade aprioristicamente absurda, a repercussão positiva perante o público, todavia, era previsível.
De um lado, os colecionadores, como Joe Exotic; de outro, os protetores, como Carole Baskin. No centro, os grandes felinos. Contando com esses três pilares, “A máfia dos tigres” revela os bastidores dos últimos cinco anos de Joe: seus relacionamentos conturbados, sua inimizade com Carole e seu “vício” por tigres e afins.
Logo no primeiro episódio – didaticamente intitulado “Não é um cara qualquer”, a preocupação é mostrar que o pseudônimo “Joe Exotic” faz jus a Joseph Allen Maldonado-Passage. Com seu cabelo pintado e em estilo mullet (popular na década de 1980), argolas nas orelhas, delineador nos olhos e vestuário estampado (ou colorido, ou listrado, ou tudo isso junto), Joe sustentaria a produção sozinho. Ele é uma personagem em si mesmo, alguém inverossímil demais para parecer real – posto que o seja. Há outras figuras excêntricas, como o “doutor em ciência mística” Bhagavan “Doc” Antle e o perigoso Allen Glover (quanto a este, o fato de ser entrevistado dentro de uma banheira é bastante simbólico em relação às bizarrices da série), mas ninguém supera o protagonista.
Joe é retratado com bastante profundidade, de modo que a série fornece material razoável para que o espectador conclua se ele é quem demonstra ou se finge uma fragilidade emocional. Para embasar a primeira interpretação, o que se tem é o trauma de adolescência com o pai e o comportamento megalomaníaco. Nesse sentido, o ego inflado (“sou franco, bonito e gosto de me divertir”) seria uma máscara para alguém bastante vulnerável psicologicamente. Se, por outro lado, uma de suas sogras estiver certa, Joe é um homem frio, capaz de tomar para si os holofotes nos momentos mais tristes e um ególatra incomparável. Nesse caso, a fala segundo a qual as pessoas iam ao seu zoológico para vê-lo – e não para ver os tigres – seria de completa franqueza (do seu ponto de vista, evidentemente).
De acordo com Rick Kirkham, produtor de uma série idealizada por Joe (antes de “Tiger King”), o fascínio pelos tigres é resultado de uma sensação de poder. Isso não explica, contudo, a obsessão dele por Carole Baskin, proprietária do Big Cat Rescue (um santuário de animais, sem fins lucrativos). Trata-se de uma fixação doentia, já que Carole nunca foi a única ativista de animais disposta acabar com o cuidado doméstico dos grandes felinos. Assim como Doc, Joe tratava abusivamente as pessoas à sua volta, de modo que faria sentido, na ótica de Carole, que ele também maltratasse os animais. Tudo se torna mais complexo quando ele se envolve em uma verdadeira teia de criminosos. Mesmo antes, o fato de ele entrar em atrito com todas as pessoas (Rick, por exemplo, que deveria ser um aliado para o lucro) é deveras significativo.
O problema de o roteiro verticalizar em Joe é que acaba sendo superficial em relação a outras personagens. Doc fica deslocado da trama principal, enquanto Carole é exposta de uma maneira maniqueísta face a Joe, salvo no terceiro episódio, quando o pêndulo vai na direção contrária. Responsáveis pelos sete episódios, Rebecca Chaiklin e Eric Goode não conseguem explorar a multifacetada Carole. Sua juventude traumática em casa é meramente mencionada, enquanto que, em relação aos felinos, pouco é mostrado. Para além de acusações sem muito embasamento (algo eticamente questionável por si só), o desfecho conduz a poucas camadas referentes à inimizade entre ela e Joe.
Da mesma forma, os episódios têm um grave defeito de foco narrativo, mudando o viés sem motivo que não o puro sensacionalismo. No começo, o documentário se apresenta como humorístico, dada a estranheza das estrelas; no meio, transita entre o suspense e o dramático; no final, se aproxima do drama de tribunal. Nas três fases, todavia, há insuficiente engajamento com o que cerca Joe, como seus maridos e seus funcionários, que fazem aparições muito breves. Por vezes, graças à montagem, a narrativa fica um pouco confusa, por exemplo nas entrevistas do gerente de campanha, que aparece muito diferente, quase irreconhecível.
São interessantes, por outro lado, as reconstruções feitas para cenas em que não havia material. É o caso do encontro de Carole com o marido, que ocorreu há anos atrás, e do episódio do tribunal, cujas imagens (se existirem) não foram disponibilizadas. No primeiro, são colocados atores mostrando as silhuetas para representar as personagens; no segundo, ilustrações estáticas, quase cartunescas, suprem, em parte, a ausência dos vídeos – além disso, trechos de matérias jornalísticas também aparecem.
Claramente “A máfia dos tigres” tem uma matéria-prima inestimável. Joe Exotic e seu círculo poderiam render uma obra de primeiríssima qualidade. O que é apresentado pela Netflix, entretanto, é um material bruto, mal trabalhado, que brilha apenas pelas surpresas (ainda que, por vezes, sejam inseridas de maneira inorgânica, como plot twists desnecessários). Mas o pior não é isso: o pior é perceber que o oitavo episódio é uma tentativa rasteira de manter o interesse do espectador mesmo considerando que a temporada já teve o seu final. Um final que, por sinal, abre as portas para muitas possibilidades (que têm grande probabilidade de concretização). Pode dar certo, desde que a realidade continue sendo mais estranha que a ficção.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.