“O POÇO” – Ciclo do inferno
À primeira vista “O POÇO” seria um suspense espanhol voltado para o retrato sociológico da humanidade em situações-limites, passando pelo embate entre o individualismo do cada um por si e a solidariedade pela união produtiva de todos. Não que a produção original Netflix não apresente esse duelo, mas ela vai além e cria uma jornada mística para o protagonista que envolve sair das trevas da claustrofobia, desespero e crueldade para encontrar algo minimante semelhante à salvação.
Após o prólogo, o espectador penetra no universo do filme pelos olhos de Goreng, literalmente despertando do sono e vendo que está em uma prisão. Não leva muito tempo para que o recém-chegado (e nós) perceba(mos) que aquela cadeia não é convencional, já que um idoso – e seu companheiro de cela – começa a explicar o funcionamento do lugar: diariamente, uma plataforma abarrotada de alimentos desce a cada nível permitindo aos presos comerem, porém quem está nos andares de cima se alimentam melhor dos que estão abaixo. Essa impiedosa desigualdade (marcada também pela angústia crescente das pessoas mais ao fundo) será enfrentada pelo novo prisioneiro, decidido a mudar o sistema.
Como se tratam de disparidades agudas, a montagem logo estabelece que os contrastes começam desde a superfície: as primeiras cenas mostram o requinte da preparação dos pratos (som de violinos, funcionários sob uniformes caros, perfeccionismo na inspeção do trabalho culinário e a própria diversidade do cardápio), enquanto, minutos depois, outras sequências revelam a anarquia de mãos, pés e bocas devorando e destroçando a comida sem preocupação com a higiene, o desperdício e a privação dos últimos detentos. Além de tais diferenças, a chegada do protagonista serve para esclarecer as regras brutais impostas pela administração, desde a descida da plataforma com alimentos, a existência de inúmeros níveis, as proibições e punições (só poder comer enquanto a estrutura estiver em seu andar sob pena de resfriamento e aquecimento da área), até as mudanças aleatórias e mensais pelos níveis.
Portanto, estar no oitavo nível para, em seguida, cair para o centésimo septuagésimo primeiro é um dos fatos que caracterizam o presídio como um inferno. O mesmo pode ser dito da claustrofobia, construída através do design de produção das celas com um poço separando cada piso; da supressão de provisões à medida que se está mais abaixo e que a tensão psicológica do que virá no futuro aumenta; e, principalmente, das interações entre os presos em um ambiente fechado lutando pela sobrevivência. Este aspecto transparece no discurso classista de Trigamasi (os de cima se veem como melhores e os de baixo devem ser maltratados), exemplificado pela recusa em se comunicar com quem está no nível superior e pela deterioração voluntária da comida que vai para o andar inferior; mas também na violência usada para conseguirem se alimentar a qualquer custo (agressões, assassinatos e até canibalismo), que cria o contraste entre o gore da explicitação desses atos e a beleza dos pratos.
Simultaneamente à descrição da atmosfera, os personagens que cruzam com Goreng influenciam em sua evolução dramática e espiritual. Trimagasi é o sujeito que desistiu de qualquer cordialidade e tem a certeza inabalável de que o mundo se divide entre os que fazem o necessário para viver e os fracos incapazes de o fazer (uma visão de mundo inflexível traduzida pela repetição da palavra ‘óbvio’); Miharu é a jovem que indica o risco do enlouquecimento ao buscar furiosamente um filho perdido conforme desce pela plataforma, parecendo uma selvagem com a aparência desgrenhada; e Imoguiri é uma mulher que crê na possibilidade de ajudar a todos até ver seus esforços se frustrarem com a falta de cooperação dos demais, evidenciado pela apatia que toma conta de sua personalidade. O próprio protagonista se transforma mediante o contato com os outros prisioneiros, começando como um homem de bom coração e preocupado com sua moral e se tornando alguém pessimista que não vê outra saída além da violência.
O diretor Galder Gaztelu-Urrutia reforça a ideia de inferno não apenas pelo gore, pelos sofrimentos a que os personagens estão submetidos e pela descrença em sua união. Ele também retrata as fracassadas tentativas de fuga como um purgatório ininterrupto e, com a parceria do diretor de fotografia Jon D. Domínguez, faz as cenas noturnas ou de trocas de níveis serem banhadas por um forte tom de vermelho representativo da violência, das emoções descontroladas e da simbologia do inferno. Ao mesmo tempo, a sensação de viver em um lugar infernal não é esporádica, pois é repetida em ciclo através da sucessão de eventos trágicos (a passagem da plataforma criando conflitos, as alucinações do protagonista atormentado por outros detentos e as frustradas tentativas de estimular a solidariedade).
Dentro dessa ambientação, a jornada do protagonista possui uma queda inicial em direção ao pessimismo, à rendição frente a um sistema desumano que o leva a reproduzir as regras do jogo e ao flerte com a tese de que o convencimento pela argumentação não seria possível. Mesmo assim, preserva o idealismo de um bom coração (afinal, escolheu um livro como objeto para levar para a prisão) que o faz incorporar a ideia de que a mudança pode não ser espontânea, mas movida por um indivíduo ou pela cooperação de alguns. Esse trajeto dramático (e espacial) de busca pela esperança e agregação desenvolve uma dimensão mística: fugir do inferno, atravessar um purgatório de mazelas, falar sobre a crença ou não em Deus, atribuir a Goreng uma imagem messiânica, encontrar um sábio pelo caminho e enviar uma mensagem redentora. Um arco nada moralista pensado pelos roteiristas David Desola e Pedro Rivero para afirmar como, nas condições mais alarmantes, a descida para o inferno dificulta, porém não inviabiliza a salvação.
Um resultado de todos os filmes que já viu.