“PARTIDA FRIA” – Tensão indicada, não sentida
A Crise dos Mísseis foi um dos momentos mais tensos da Guerra Fria. Após a Revolução Cubana e a instalação de armamentos de longo alcance em Cuba, a década de 1960 assistiu à ameaça de uma guerra nuclear entre EUA e URSS. Os treze dias que abalaram o mundo já foram retratados no cinema, inclusive na imaginativa narrativa de “X-Men: primeira classe“, a partir dessa sensação inquietante. É o lugar também visado por PARTIDA FRIA ao colocar sua trama no pano de fundo da bipolarização mundial. Porém, o desejo não se efetiva e a tensão é apenas etérea e fugidia.
A produção original Netflix acompanha o enxadrista e gênio da matemática Joshua Mansky ser enviado para jogar xadrez contra um soviético em uma competição na Polônia. Em meio à crise político-militar de 1962, ele se vê envolvido em uma rede de espionagem que coloca não só o resultado do jogo em xeque. É através da disputa ocorrida no tabuleiro entre os jogadores que se pretende mostrar como o mundo também estava dividido e cada mínimo movimento precisa ser cautelosamente planejado.
Teoricamente, a proposta apresentava potencial promissor por se apoiar na tensão pertencente àquela conjuntura. Porém, a execução revela resultado oposto: a angústia faz parte do universo histórico referenciado pela obra e funciona somente como um espectro que ronda a diegese sem penetrá-la. Desde a primeira cena, os recursos utilizados para criar a urgência de um conflito global não impactam (simplesmente empregá-los não é suficiente se faltam intensidade e construção dramática): apesar (1) de a técnica do in media res fazer com que se inicie por um momento preocupante, ela não permite ao espectador sentir qualquer apreensão (são detalhes filmados rapidamente ou ainda carentes de maior comoção); e (2) de a contagem regressiva do tempo até chegar ao clímax preparar o terreno para o suspense, falta criar deixas ou expectativas do que pode ocorrer no futuro.
Dificuldade semelhante em evocar a tensão perpassa a construção do protagonista. Joshua é até apresentado de forma competente através de contradições: conversa com um taxista mostrando humor e sagacidade, apesar dos trajes surrados e da aparência desgastada; em seguida, demonstra ter pensamentos rápidos para um jogo de cartas, ainda que tenha manipulado as apostas com o barman. A partir do instante em que viaja para Polônia, seu desenvolvimento perde coerência ou contém elementos pouco justificáveis: muda de ideia quanto a enfrentar o adversário sem razão aparente; fica atordoado nas primeiras idas ao auditório do confronto também sem motivo palpável; tem uma relação dúbia com o álcool, ora impedindo-o de lembrar o dia anterior, ora ajudando-o a processar estratégias de jogo, que pouco acrescenta; aceita seu envolvimento como espião sem questionamentos; e é vivido por Bill Pullman com uma contenção de emoções própria daquele mundo, porém responsável por afastar o espectador e chamar a atenção para a fisionomia exageradamente fria do ator.
Antes não se conectar com um personagem que mal se compreende fosse a única fragilidade. A frieza de Joshua igualmente preenche a trama de espionagem, já que o diretor Lukasz Kosmicki prefere o comedimento à energia nas sequências de ação e conspiração – optar por esse estilo não seria questionável se causar reações tensas não fosse o propósito da narrativa. Além disso, o entrelaçamento entre a subtrama do xadrez e a movimentação dos órgãos de inteligência não tem coesão e parecem arcos distintos para dois filmes. A preocupação em explicar a entrada do protagonista do torneio é cômica dada as regras absurdas; a competição se alterna entre um gesto simbólico para a Guerra Fria e uma desculpa para as intrigas políticas em torno da Crise dos Mísseis, sem definir o que é; e a trama de mistério é prejudicada por sua aparição tardia, que se revela através de diálogos muito explicativos e de uma sucessão de fatos, reviravoltas e interesses confusos.
Em outras passagens, o esforço para mexer com as emoções do público não escapa da artificialidade. Novamente se percebe que a linguagem cinematográfica, os personagens e a trama são incapazes de imprimir a aflição existente no momento histórico e simplesmente verbalizam o que deveria ser sentido. Por conta do descompasso entre intenção e sentimento, texto e contexto, ambientação e obra, o cineasta recorre a imagens de arquivo e narrações em voice over que cumpram aquilo que não conseguiu: representações do passado comentam como seria viver em um mundo que acordava diariamente temendo ser aquele o último dia de existência. O filme, por si só, desperdiça tais registros por não dar função mais expressiva a eles e se atém demais à secura da abordagem.
Contraditoriamente à própria proposta, “Partida fria” se sai melhor quando dá vazão a insights de racionalidade que não dependam tanto de alguma expressão emocional. É assim que os monólogos sobre as diferentes opressões sofridas pela Polônia (feitas pela Alemanha na Segunda Guerra Mundial e pela URSS na Guerra Fria) e sobre o uso maléfico da ciência para fins bélicos se sustentam como oásis no meio de todo um resto frio, distanciado e indiferente. A partir, então, de muitos problemas e algumas virtudes, a produção indica a tensão do período retratado sem jamais se apropriar dela artisticamente.
Um resultado de todos os filmes que já viu.