“RAGNAROK” – Mitologia desperdiçada
Imagine uma série nórdica trabalhando sua própria mitologia sobre deuses, gigantes, fim do mundo e outros elementos fantásticos. Imagine também sua produção em uma plataforma conhecida pela liberdade conferida aos realizadores. Essa combinação poderia possibilitar a RAGNAROK na Netflix uma apropriação inspirada de seus mitos, não fosse a utilização meramente ilustrativa de suas narrativas culturais como click bait para os interessados no tema. Na realidade, tudo fica mais próximo de enunciados vazios saídos de um material original muito mais fascinante do que de uma dramaturgia conectada à história local.
Como o próprio nome do seriado sugere, trata-se da crença por parte dos nórdicos no fim do mundo causado por uma série de eventos. Seriam desastres naturais e conflitos entre deuses e gigantes os fatores responsáveis por esse momento seminal. Sob uma base mitológica, estão os irmãos Magne e Laurits e a mãe Turid que chegam à cidade norueguesa de Edda após muito tempo distantes. Os recém-chegados e os demais moradores se deparam com as mudanças inesperadas do ecossistema da região, que podem anunciar um apocalipse, e os misteriosos segredos da família mais poderosa do lugar.
As explicações do Ragnarok surgem rapidamente a cada início de episódio, através de uma cartela com informações sobre suas características e agentes constitutivos. É uma estratégia aparentemente eficiente para contextualização do universo cultural do qual a diegese se relaciona, porém algo logo desperdiçado. Primeiro porque o aspecto natureza da trama aparece tímido e nunca se torna um conflito dramático palpável: os referidos desastres naturais ativadores do fim do mundo são mencionados apenas esporadicamente, e os despejos impróprios de resíduos tóxicos pela indústria local acarretam poucos efeitos nocivos perceptíveis (alguns peixes mortos, uma jovem engajada na luta pela preservação da natureza e um homem doente), que não convencem na escala grandiosa dos perigos. Mesmo os constantes planos gerais das paisagens (cordilheiras, geleiras, córregos…) perdem função narrativa ao serem usados simplesmente como elementos de transição de cenas ou pano de fundo – as belezas em questão também contrariam as afirmativas do roteiro de que a poluição avançava em níveis críticos.
Quando se passa para a dimensão fantástica da proposta, a mesma fragilidade em abordar o que se promete reaparece. A guerra entre criaturas não humanas já se inicia fortemente prejudicada pelo protagonista inexpressivo, não tratado como um sujeito carismático dentro de sua personalidade deslocada, mas como um jovem vazio de emoções e difícil de se conectar – problema causado tanto pela falta de recursos dramáticos de David Alexander Sjøholt quanto da direção constrangedora de Adam Price, que evidencia as limitações do ator em entregar momentos reflexivos ou sentimentais. Em igual medida, a jornada do herói atravessada pelo personagem se desenvolve sem sutilezas – as cartelas informativas e uma senhora funcionária de uma loja se certificam continuamente de que o público entenda o que acontece – e figuras coadjuvantes com algum valor – Turi e Laurits ficam de lado sem conflitos próprios ou alguma simbologia que justifiquem sua existência.
Na outra ponta de qualquer embate maniqueísta estão os vilões, nesse caso também à altura do herói. A família formada por Vidar, Ran, Fjor e Saxa abraça a caricatura de personagens que precisam escancarar sua vilania e desprezo pelos demais a cada mínimo instante sem sutilezas, o que se sobressai nas atuações de todos os intérpretes. Além disso, os aspectos narrativos e técnicos em torno deles também não ajudam em nada: os efeitos visuais são primários, de tão artificiais, a direção encena as sequências de ação ou simples interação de maneira inverossímil e exagerada e seus arcos dramáticos são comprometidos pela falta de objetivo (o que os deixa estagnados em uma posição narrativamente nada atrativa). Esse último aspecto, por sinal, revela como a trama é tão frágil que pode desviar o foco para ideias incompatíveis com a premissa central.
Tal desvio, por exemplo, acontece regularmente quando a série investe em uma abordagem teen, típica de outras obras para o público adolescente. Enveredar-se por esse caminho conduz para triângulos amorosos e dramas colegiais já vistos da mesma forma anteriormente, para figuras clichês exaustivamente desgastadas pela cultura pop (o novato desajustado, o bad boy sensual, a aluna impopular, a jovem prepotente…) e para situações sem nenhuma novidade (discussões durante as aulas, a solidão do momento do refeitório…). Cada segmento juvenil quebra o tom geral da narrativa, que não consegue se equilibrar entre uma escala mítica grandiosa e os conflitos cotidianos dos indivíduos e acaba por se tornar uma colcha de retalhos disforme.
É bom que se diga que o desencontro entre mitos e trajetórias comuns também se deve ao arcabouço geral de como a história é contada. Além de o baixo orçamento prejudicar cenas de ação em que o elemento fantasioso é crucial, a direção não tem timing para construir sequências tensas – a montagem paralela do final do primeiro episódio é confusa e incapaz de dar destaque às linhas narrativas que pretendia – nem para coordenar os atores e extrair o sentimento pedido a cada ocasião – o exemplo do protagonista é o mais sensível, tamanha é a quantidade de tempos mortos que acentuam suas deficiências. Os problemas não podem nem ser salvos na ilha de edição, já que a montagem é outra fragilidade com seus cortes abruptos que deixam transparecer as falhas de continuidade.
A ideia original de “Ragnarok” não era ruim. Inserir o mitológico no cotidiano pode ser interessante, desde que haja uma sintonia entre as duas dimensões e o mito transborde para a realidade, algo que poderia ser feito na metáfora sobre a destruição ambiental ou sobre a ganância de grandes empresas e não em com dramas adolescentes. Nesse sentido, as cartelas iniciais dos seis capítulos são mais convidativos do que tudo que vem depois.
Um resultado de todos os filmes que já viu.