“A POSSESSÃO DE MARY” – O mal da indiferença
A experiência de assistir a um filme de terror ultrapassa a simples tensão de ver monstros, criaturas ou entidades surgindo para atacar. Se a plateia se envolve com o que vê em tela, isso parte do envolvimento emocional com os personagens: eles importam, a aflição do que os ameaça contagia e o alívio de que tudo aquilo é ficcional acalma os ânimos. Contrariando o que poderia contribuir para a narrativa, A POSSESSÃO DE MARY oferece figuras com as quais o trabalho de identificação e conexão carece de background justificável e conflitos assimiláveis.
Quem deve ser acompanhada é a família formada por David, Sarah, Lindsey e Mary, após o patriarca e capitão de navio comprar uma embarcação abandonada que estava em leilão. Ele crê que essa é uma possibilidade de dar uma vida melhor aos familiares e ingressar em um futuro melhor. Entretanto, ao embarcarem, eventos assombrosos atormentam a tripulação, colocando a dúvida se a sanidade de todos está abalada ou se uma maldição ronda a todos.
O perigo do sobrenatural sobre o navio e os desafios de estar em alto-mar não são o bastante para a obra, que também insere um drama familiar para os personagens. Trazer uma traição e os questionamentos acerca da possibilidade de superar o passado para um futuro mais promissor são questões que o roteiro de Anthony Jaswinski falha em explorar ao ferir o princípio do “mostre, não diga”: os diálogos de pai, mãe e filha primogênita abusam da exposição para situar o público nas particularidades da família; e a trama não se articula a esse conflito, para além das tentativas de explicação forçadas do texto incapaz de mostrar o porquê da aquisição feita por David naquelas condições. Portanto, todos eles são vazios de camadas e atrativos, apesar de os realizadores não se darem conta do mal provocado.
A ausência de maior vínculo aos protagonistas também acontece devido ao pouco que o roteiro oferece, principalmente, para seus principais atores. Gary Oldman dá vida a um sujeito que poderia ser interpretado por qualquer outro ator, uma vez que sua força imponente não é aproveitada, em razão de closes que, teoricamente, dariam oportunidade para transmitir o peso das responsabilidades e de falas bastante artificiais sobre o drama familiar – assim, David é absolutamente genérico e colocado em um arco sem coesão entre seu desejo de recomeço e a compra no leilão. Já Emily Mortimer apenas precisa entregar uma pessoa reativa que demonstre fisicamente o medo diante do sobrenatural ao redor, quando não é vilanizada pelo texto ao sugerir que teria culpa pelos conflitos da família.
Ademais, a ameaça que poderia atingir, minimamente, o espectador não encontra uma linha unificada. Os personagens se veem cercados por todo tipo de provação genérica que, ao mesmo tempo, não define uma identidade para o filme e pode ser encontrada de modo mais bem utilizado em outras produções: sustos criados a partir de pesadelos, vultos indistinguíveis vislumbrados rapidamente, ações misteriosas filmadas fora de quadro, ruídos enigmáticos e chamativos para algum risco nas sombras e o ceticismo quanto à gravidade da situação vivida. São tantos recursos usados pelo diretor Michael Goi, como se estivesse cumprindo um checklist de obrigações para o gênero, que a atmosfera de suspense perde impacto – mesmo tendo boas ideias, como uma corda em forma de forca ser tratada como uma eficiente arma de Tchekhov antes da primeira morte e uma reação surpreendentemente violenta de uma das personagens, de fato, gerar choque.
Outra razão para a indiferença ser o resultado predominante é a estrutura narrativa não linear estabelecida pelo vaivém cronológico entre o relato de Sarah para uma policial e a representação dos fatos de sua declaração. A ideia poderia potencializar a tensão e estender o clima de mistério se o artifício não fosse prejudicado pela montagem de Jeff Betancourt, que não alterna de um segmento a outro com fluidez e deixa, assim, furos na continuidade (por exemplo, não fica claro quando a mulher relata ou relembra o passado recente nem quando passa de uma atitude para outra). Além disso, alguns fade outs são empregados para criar um efeito dramático de captura da atenção do público, porém parecem simplesmente cliffhangers do fim de um episódio de série para o seguinte (uma estratégia de manipulação forçada que, segundos depois, já se esvazia).
Ainda que “A Possessão de Mary” tenha menos de uma hora e meia, a falta de energia para acompanhar a jornada de David, Sarah, Lindsey e Mary já pode ser sentida. A direção de Michael Goi não sai de um trabalho burocrático, por exemplo tentando enganar o espectador em uma cena em que posiciona demoradamente a câmera no mastro no terceiro ato e desperdiçando as limitações específicas da locação com passagens mais numerosas do que aquelas rapidamente inseridas nos últimos minutos. O roteiro não consegue construir personagens que possam ser vistos como palpáveis e tenham conflitos decisivos para eles nem sequências emocionalmente perturbadoras. Para encerrar, diretor e roteirista ainda combinam para entregar um desfecho de reviravolta antecipada minutos antes que simboliza o mal da indiferença geral que acomete o filme.
Um resultado de todos os filmes que já viu.