“QUEM COM FERRO FERE” – Dualidade dramática
Na teoria psicanalítica freudiana clássica, as ações humanas são direcionadas até um fim por uma energia psíquica profunda liberada após sua conclusão. Essa dinâmica, que contempla psique e experiências do indivíduo, é responsável por dois tipos de pulsão: a de vida, voltada para a criação e a sobrevivência, e a de morte, para a destruição. Tais considerações formuladas por Freud no início do século XX são uma porta de entrada para apreciar QUEM COM FERRO FERE, produção espanhola vencedora dos prêmios Goya de ator (Luis Tosar), ator revelação (Enric Auquer) e som, que chega à Netflix.
Superficialmente, o filme seria simplesmente um suspense com traços dramáticos que segue o enfermeiro Mario trabalhando em um asilo e cuidando de idosos com algum problema de saúde, enquanto espera o parto de sua esposa Julia. A rotina tradicional e já conhecida é tumultuada com a chegada de um novo paciente ao local, o chefe do cartel, Mario. O recém-chegado obriga, então, o protagonista a questionar entre a importância de seu dever e a punição necessária a um violento criminoso.
A contraposição sistematizada pelo psicanalista é a base da narrativa, fazendo com que as duas pulsões se alternem a cada cena e mostrem como os extremos não são excludentes. A estrutura é repetida ao longo do primeiro ato em diversos exemplos sucessivos: a consulta médica de Antonio, que indica os sintomas de sua doença degenerativa, é seguida pelos seus filhos Toño e Kike assassinando um sujeito que atrapalhou os negócios e pelo treinamento realizado por Mario e Julia para o parto; a ida do traficante para a casa de repouso onde buscaria atenuar as dores e sofrimentos com medicamentos, cuidados médicos e fisioterapia, pela insistência dos parentes para que ele continue participando das atividades criminosas; e o uso de um aparelho para levantar Antonio da cama devido à incapacidade de se mover, pela utilização de um ultrassom para mostrar as primeiras imagens do feto na barriga de Julia.
Esse modelo se reflete nas atuações de maior destaque do elenco a cargo de Xan Cejudo e Luis Tosar. O primeiro compõe o idoso lidando com a exigência física do papel em ter sua coordenação motora progressivamente comprometida e sua capacidade de fala interrompida, o que o leva a extravasar a fúria e desespero somente pela face – inicialmente, quando ainda possuía uma saúde razoável, combina a vulnerabilidade corporal à personalidade detestável do bandido. Já o segundo sugere a bondade do enfermeiro pela forma atenciosa como trata os pacientes, mesmo agressivos, e a esposa grávida, ajudando-a com as peculiaridades da gestação, porém nuances conflituosas e sombrias surgem a partir do contato com o traficante – assim, desenvolve-se um personagem atormentado pelo passado e moralmente ambíguo que mergulha, aos poucos, em uma jornada de deterioração diferente da física.
As pulsões de vida e morte recobrem também os distintos estilos de cenas construídos pelo diretor Paco Plaza. Existem momentos introspectivos de reflexão de Mario acerca do que viveu e do que deve ou não fazer no presente, como se a energia da vida ainda estivesse ali. A princípio, há instantes pontuais e frenéticos em que a câmera se movimenta aceleradamente, como os flashes do passado de Mario e a sequência de ação durante um delito cometido por Toño e Kike que demonstram uma ameaça à espreita (morte). A penetração dos riscos na narrativa faz com que a última estética se imponha e leve o arco do protagonista com maior energia até o final, dispensando a introspecção – exemplo disso é visto quando ele corre pelo corredor da clínica sob enquadramentos pulsantes de uma câmera oscilante.
Dramaticamente, as trajetórias dos dois principais personagens seguem as mudanças da linguagem: o que antes se dividia entre vida e morte, assume prioritariamente o caráter destrutivo deste último. A dualidade fica em suspenso e as sequências se articulam seguidamente através de uma sucessão de acontecimentos negativos, a começar pelo momento em que Antonio vê pela TV as consequências da operação dos filhos, cai da cama e não é prontamente socorrido por Mario. A partir daí, traumas, ameaças e assassinatos se sucedem sem que haja algum suspiro de alívio durante o segundo ato ou algum contraponto aos perigos contínuos. Cada uma dessas passagens, assim como aquelas que alternavam as duas pulsões, se acentua através de uma montagem de cortes secos que independe de raccords ou transições sofisticadas, pois o que se pretende é o choque de extremos.
Quando tudo parece se encaminhar para o fim da dualidade, ela retorna de modo ainda mais intenso do que visto até então. O cineasta utiliza em duas ocasiões a montagem paralela para intercalar eventos ocorridos em ambientes e núcleos diferentes, mas simultaneamente e também criar um efeito dramático expressivo. Com o recurso, é possível reafirmar como aquele universo é composto pelas pulsões antagônicas e que, mesmo durante o fim de algo, encontra-se a possibilidade de criação: no primeiro caso, falecimento e nascimento se entrelaçam com movimentos de uma mise en scène similar; no segundo, o plano final reúne uma imagem chocante com a demonstração provocativa de que vida e morte trabalham em conjunto.
Um resultado de todos os filmes que já viu.