“VOCÊ” [2ª TEMPORADA] – Locomotiva descarrilhada e desgovernada
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A despeito de alguns acertos, o saldo da segunda temporada de VOCÊ é extremamente negativo. A série original Netflix é um excelente exemplo do que não deve ser feito em roteiro e direção de série audiovisual – se é que se pode chamar o trabalho apresentado de roteiro e direção, sem risco de um escárnio hiperbólico. Não há exagero: nove dos dez episódios são dignos de despejo para o local mais remoto e inabitável do planeta.
Depois das mortes resultantes da obsessão que nutria por Beck, Joe decide sair de Nova Iorque e recomeçar sua vida. Na segunda temporada, ele se muda para Los Angeles e assume uma nova identidade. Agora conhecido como Will, ele está determinado a não se apaixonar novamente, concluindo não servir para o amor. Quando Love aparece no seu caminho, o sentimento se torna irresistível – assim como inafastáveis os perigos que ele já conhece.
O caminho óbvio para Greg Berlanti e Sera Gamble fazerem uma segunda temporada fraca seria repetir os eventos da antecedente. De fato, existe alguma repetição estrutural (Joe pega escondido uma calcinha de Love, ele adota uma adolescente e cuida dela em razão da ausência de uma autoridade parental confiável etc.), subjetiva (o protagonista continua “stalkeando” – leia-se, espionando ou perseguindo virtualmente – o círculo afetivo da amada para ganhar a simpatia das pessoas) e estética (sobre-enquadramentos com telas de celulares mostrando conversas, por exemplo). Ocorre que, se fosse apenas esse o equívoco dos showrunners, o resultado seria apenas medíocre.
É curioso observar que nem tudo é horrível na segunda temporada da série (aliás, perto dela, a primeira é uma obra-prima). O sétimo episódio, nesse sentido, destoa completamente do conjunto, alcançando um nível bem razoável, com reflexões eventualmente sarcásticas sobre o uso da internet para facilitar a busca por um relacionamento (Joe qualifica os apps como “bárbaros”, revelando-se incapaz de compreender o paradoxo da artificialidade do mundo virtual, com fotos falseadas e perfis rasos, face ao calor da realidade que ele conhece bem) e um texto de elogiável autoajuda sobre amor próprio. É também nesse episódio que Delilah ganha maior espaço, revelando-se a personagem mais subaproveitada até então.
Porém, tudo cai por terra no episódio seguinte, que é o ápice da trama mal construída e muitíssimo mal desenvolvida. Parece que houve um esforço em apagar as virtudes que tentavam aparecer. É o que ocorre, por exemplo, na mudança do quinto para o sexto episódio: naquele, há um bom trabalho de atuação entre Penn Badgley e Ambyr Childers (respectivamente, Joe e Candace) – que, em dois momentos distintos da narrativa, precisam transmitir sentimentos complexos (raiva reprimida, rancor dissimulado, receio autêntico etc.) – e um design de produção coerente com a proposta do episódio; neste, o ponto de vista da narrativa se perde e salta para pontos aleatórios, ignorando a forte subjetividade de Joe.
A série adota referências de primeira qualidade, como “Janela indiscreta”, “À beira do abismo” e “Projeto Flórida”, fazendo-o, pelo que parece, para envergonhar os respectivos envolvidos. A montagem é caótica e, salvo quando se apoia no gore (no segundo episódio, uma sequência de montagem paralela entre Love cortando um pedaço de carne e Joe cortando um cadáver em pedaços), é quase tão ruim quanto o trabalho de foco – certamente um dos piores de todas as produções Netflix. Reforçando a falta de unidade dos dez episódios, os flashbacks são esteticamente pavorosos: às vezes habitando um pretérito mais recente, com Joe e Candace, outras vezes mais distante, com Joe e sua mãe, porém sempre se esquivando de qualquer unidade na fotografia, soando como escolhas aleatórias (notadamente no que se refere às cores, à iluminação, à profundidade de campo e, claro, ao foco). A falta de coesão imagética para retratar o pretérito diegético é gritante.
Nada supera, contudo, o vergonhoso roteiro. O primeiro episódio pode enganar o público, quando um cadáver não simboliza o que parece (e esse não é o único momento em que o script puxa o tapete do espectador, o que ocorre também quando Joe tem delírios com Love). Nos pormenores, todavia, já existem fortes indícios de um texto muito mal escrito: por que Joe escolhe Los Angeles, se queria uma cidade tranquila? Ainda no capítulo inicial, mais equívocos são “jogados no ventilador”, como diálogos artificiais e atropelos narrativos assustadores. Tentando corrigir parte deles, o segundo episódio faz um retorno cronológico, o que, na prática, inicia uma cronologia absurdamente bagunçada. Entre coincidências pouco verossímeis (L.A. é tão pequena para Hendy estar justamente na mesma festa?) e condutas contraditórias (depois de tudo que aconteceu, como poderia Joe não saber a relação entre Forty e Love? Depois de revelar intimidades, por que Delilah ofende Joe?), a segunda temporada de “Você” vai se encorpando como uma locomotiva descarrilhada.
Parcela da responsabilidade pelo descarrilhamento vai para o péssimo trato de personagens fundamentais no enredo, Love (Victoria Pedretti, esforçada) e Forty (James Scully, digno de pena – ator e personagem, na verdade). A própria falta de criatividade nos nomes – que incluem também pérolas como Amy Adam (que não é a atriz, que tem um “s” no final) e David Fincher (que não é o cineasta, ofendido com uma homenagem vexatória como essa) – já é indicativo de um texto mal escrito. Mas não, o script vai além das piores expectativas, incluindo falas antológicas como “coisa de supervilão” (para se referir a uma passagem secreta em uma residência de uma personagem que Joe acredita ser ruim) e uso de alucinógenos. Os entorpecentes fazem parte do oitavo episódio, quando aparentemente os envolvidos levaram a ficção a sério demais e consumiram tóxicos de verdade. Dificilmente uma narrativa tão insensata e pérfida como a que se apresenta seria resultado de uma mente em pleno controle das faculdades mentais. Após uma promissora contagem regressiva (que geraria tensão), um tapa na face do espectador: os rumos tomados pela trama ultrapassam o limite do nonsense.
O problema não é ter reviravoltas no roteiro, pelo contrário, elas são benéficas – desde que se trate de um texto bem desenvolvido, o que definitivamente não é o caso de “Você” na segunda temporada. Todo o potencial de um plot twist é absoluta e obviamente esvaziado se ele é seguido de outro plot twist pouco tempo depois (atenua o efeito do primeiro e faz com que toda a narrativa perca o crédito – se é que um dia ela o teve). Mesmo a plateia mais ingênua conclui que o que acontece não é confiável e a suspensão da descrença é abalada. Enquanto Joe duvida de si (constantemente perguntando se é boa pessoa), o público duvida da sanidade de quem criou aquele dejeto em formato audiovisual. No décimo episódio, cansado das numerosas mudanças de rumo, até mesmo o protagonista responde uma surpresa da história com “what the fuck!?”. Ele percebeu que a série do qual faz parte, além de ter saído dos trilhos, não tem norte nenhum. É uma locomotiva descarrilhada e desgovernada, atropelando a inteligência do espectador.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.