“THE WITCHER” – Colcha de retalhos
Frequentemente, a cultura pop mergulha pela ficção histórica para reinventar o passado registrado pelos historiadores ou criar um enredo de pano de fundo histórico. THE WITCHER, lançado no catálogo de séries da Netflix, nem abraça com muita intensidade a História, mas utiliza a ambientação medieval para criar uma trama sobre disputas políticas e elementos sobrenaturais. Dessa mistura poderia se esperar uma série de possibilidades saídas do drama, da aventura e do horror se, na realidade, não surgisse uma colcha de retalhos na narrativa.
A produção concebida por Lauren Schmidt é a segunda adaptação do material originalmente literário pensado por Andrzej Sapkowski e Przemysalaw Truscinski (já havia dado origem a um conjunto de jogos eletrônicos), organizada em torno de oito episódios na primeira temporada. O protagonismo fica por conta de Geralt de Rívia, um bruxo mutante, que peregrina pelo mundo caçando monstros e lidando com seres humanos tão bestiais quanto as criaturas que persegue. Durante sua jornada, conhece a maga Yennefer e precisa encontrar a jovem princesa Ciri.
Considerando apenas o piloto, a série é bem sucedida em construir a ambientação do universo medieval, atrelado a uma dimensão mágica e sobre-humana, apresentar os personagens e ainda oferecer sequências de lutas e batalhas eficientes. Entretanto, à medida que os capítulos avançam, falta um eixo para a narrativa que simplesmente se contenta em transitar por três subtramas aparentemente desconexas: Geralt se mostra como alguém recluso, de poucas palavras e de voz grave intimidadora que se esforça para não escolher lados e aceitar um mal menor enquanto é contratado para eliminar diferentes seres; a princesa Ciri vê o reino de Cintra ser devastado por Nilfgaard e foge pela floresta, precisando sobreviver com o misterioso poder que carrega dentro de si; e Yennefer é uma moça com deformidades corporais nas costas e no rosto que é vendida pelo padrasto para uma Irmandade de Magos e recebe o treinamento apropriado para se tornar uma feiticeira.
Inicialmente, a trama flerta com a discussão sobre o que é ser um monstro: uma criatura fisicamente diferente do padrão humano ou a humanidade que age brutal e preconceituosamente com o que é diferente. Os três personagens principais não escapam dessa situação, já que o bruxo é tratado como uma aberração infernal por ser um mutante e lutar violentamente contra seus antagonistas no primeiro episódio, além de possuir uma caracterização muito singular com os longos cabelos brancos e os olhos que mudam de cor do amarelo vivo para o preto sombrio; Ciri é criada pela família em uma bolha superprotetora à parte que a impede de saber suas origens e o poder que tem; e Yennefer é humilhada em razão de seu corpo, fato que a dificulta sentir-se amada. Por outro lado, as supostas aparências monstruosas contrastam com o que, de fato, outros personagens fazem de cruel, como o massacre de Cintra pelos guerreiros de Nilfgaard e dos humanos sobre os elfos e o treinamento torturante na Irmandade.
Porém, esse tema não se sustenta por muito tempo, nem sequer apresenta qualquer tipo de desenvolvimento, aspecto que se repete também nas subtramas e personagens. Concomitantemente ao abandono do debate acerca da monstruosidade, a condução narrativa é insatisfatória em virtude de vários problemas de ritmo e evolução dramática: Geralt transita por desafios procedurais (que se encerram no mesmo episódio como o monstro da semana), pouco se relaciona com as demais trajetórias, já que seu encontro com a maga é esporádica e sua busca por Ciri é confusamente adiado, e ainda compromete a atuação de Henry Cavill, limitada a um mesmo tom carrancudo e sem emoções pelo roteiro; Yennefer muda de personalidade e se torna poderosa imediata e inesperadamente, terminando por se envolver em intrigas políticas confusas na Irmandade; e Ciri fica estagnada por ter o arco que menos progride e mais aparenta carecer de objetivo concreto para além da fuga sem destino certo.
Grande parte do problema de desenvolvimento se deve ao encadeamento dos capítulos, dos três núcleos e dos próprios arcos dramáticos em si. A montagem incorre em variadas e numerosas deficiências, como a falta de comunicação entre os segmentos que, majoritariamente, correm em paralelo, a confusão cronológica do andamento dos fatos que alternam entre passado e presente de modo caótico e sem preparação e a ausência de coesão na progressão das jornadas dos três personagens centrais. Por fim, a subtrama que deveria comandar a série (a batalha entre Cintra e Nilfgaard e o papel de Ciri como herdeira) é marginalizada pelas andanças repetitivas do Lobo Branco e pela desinteressante e incoerente busca de Yennefer por poder – mesmo no desfecho, quando a narrativa reencontra seu foco narrativo, ainda faltam elementos que justificam adequadamente a mitologia sobrenatural criada.
A colcha de retalhos evidenciada no tratamento dramático do enredo se aplica, em menor escala, à composição visual da obra, o que acaba por deixá-la acima do roteiro. Em termos positivos, a mistura entre Idade Média e universo mágico aparece no design de produção e na fotografia, que articula ambientes próprios da época (castelos, florestas, vilas e aposentos reais) e atmosferas gélidas, assustadoras ou transcendentais, a depender do momento (a iluminação acinzentada dos espaços por onde Geralt caça as criaturas, a vegetação decomposta e as caveiras que preenchem os cenários e o filtros de luz de um verde fabulesco). Além disso, se o aspecto assustador também se percebe nas eficientes coreografias de luta que mostra sem pudores o sangue, as mutilações e as vísceras, o mesmo não se pode dizer da caracterização dos monstros e de outros seres mágicos, muito irregulares no misto entre maquiagem e efeitos visuais.
Cercado por expectativas dos fãs dos livros e dos jogos, “The Witcher” parece interessado muito mais em agradar quem já conhece e gosta do material do que, propriamente, criar uma série coesa e narrativamente bem estruturada. Por conta disso, os oito episódios da primeira temporada resultam em uma bagunça de diversos elementos que se chocam continuamente e produzem uma colcha de retalhos jamais costurada a contento. Esse é o resultado de uma obra que, simplesmente, se interessa em inserir tudo que conseguir sobre sua fonte a despeito do meio gerador da história.
Um resultado de todos os filmes que já viu.