“HONEY BOY” – Confrontação da própria história [21 F. Rio]
Shia LaBeouf é uma personalidade controversa: do início de carreira artística ainda criança ao aparecimento em grandes produções, às polêmicas de uso de drogas e comportamentos questionáveis, até a redução dos papéis no cinema. Por conta dessa trajetória, é curioso seu retorno aos holofotes ser através de uma história autobiográfica escrita pelo próprio e concentrada na tumultuada relação com o pai. Entretanto, HONEY BOY não se limita a um âmbito pessoal muito específico e se comunica com o público em geral por usar o conflito com o passado como mote de fácil identificação.
Inspirando-se em sua vida, o filme acompanha o menino de doze anos Otis em ascensão na TV. Ao seu lado, está seu pai, James, um ex-condenado e viciado em reabilitação, que se dedica ao filho e à carreira dele. Apesar disso, trata o garoto de maneira tão rude e violenta que o faz ter traumas. Já adulto, Otis se interna em uma clínica de recuperação para tratar seu vício em bebidas alcoólicas, o que ativa recordações de muitos abusos cometidos pelo pai.
Percorrendo a narrativa como um todo, há alguns temas sensíveis da trajetória de Shia LaBeouf que ele os enfrenta através da arte. Abordam-se as crianças, desde muito cedo, envolvidas nas atribulações da fama e das obrigações de construir um personagem e atuar; a pasteurização de produções comerciais hollywoodianas que se fecham em fórmulas que pouco desafiam os artistas; os riscos de uma vida desregrada com álcool e outras drogas desestabilizarem carreiras e potenciais criativos; e as possibilidades de internação em clínicas de recuperação para tratar transtornos psicológicos. Porém, acima de tudo, os embates familiares ocupam maior espaço narrativo sob a forma dos desentendimentos com a figura paterna e das influências do passado no presente.
Dentro perspectiva fílmica, a mistura entre realidade é ficção é algo muito caro. Nas duas primeiras sequências que introduzem a versão adulta de Otis (Lucas Hedges) e a infantil (Noah Jupe), o que parecem ser simplesmente cenas dirigidas pela cineasta Alma Har’el, na realidade, são filmes dentro do filme, encenados pelo protagonista em sua carreira de ator – recurso que traduz a metalinguagem do fazer cinematográfico na vivência do elenco e do personagem principal. No caso do indivíduo mais velho, ainda há outras duas questões: a ironia da primeira passagem remeter a “Transformers” (obra na filmografia de Shia Lebouef); e a montagem paralela acelerada que intercala suas filmagens à sua vida real de excessos. Além disso, Har’el registra o conjunto habitacional onde Otis e James vivem com longos planos e planos-sequência fluidos que conferem realismo ao fictício.
Em termos estéticos, o elemento crucial para a conexão entre as diferentes linhas temporais retratadas é a montagem de Monica Salazar e Dominic Laperriere. Através dela, criam-se paralelismos estruturais e temáticos nas duas sequências de apresentação já mencionadas e outros que aproximam ainda mais presente e passado: assim ocorre com os raccords de movimento quando o menino anda pelo local onde mora, deserto à noite, enquanto o adulto, por uma floresta sozinho; e com a emergência do tempo pretérito na atualidade, assombrando o protagonista através de sons antigos novamente ouvidos, imagens passadas revisitadas como se estivessem próximas e falas do pai ecoadas ao longe. Tais retornos se configuram como um acerto de contas com a infância e um enfrentamento das memórias do pai.
Por conseguinte, a caracterização de Otis também assume função primordial. Mesmo que esse segmento da narrativa seja mais curto, o presente é vivido com eficiência por Lucas Hedges: transmite fisicamente a saúde debilitada e as marcas problemáticas deixadas por James (um olhar perdido, um andar desorientado, reações intempestivas), demonstrando o peso das lembranças e das emoções em sua trajetória. Já Noah Jupe mostra seu brilhante potencial no seu papel mais desafiador até agora, que foge da imagem do bom garoto tímido associada aos personagens anteriores que interpretou: ele encarna alguém despojado (andando constantemente sem camisa e com cordão de ouro), simpático por se relacionar com ternura com uma adolescente mais velha (momentos com ela revelam claramente a beleza de sua personalidade), precoce para a idade por fumar aos doze anos e presenciar discussões agressivas dos pais por telefone; e angustiado internamente por não receber o carinho e a educação desejados.
Complementar a Otis está James, figura extremamente complexa e humanizada por carregar muitas nuances e conflitos próprios – sem falar o desafio assumido por Shia LaBeouf de interpretar aquele que lhe causou tantas dores. Trata-se de um sujeito que cuida da carreira do garoto muito mais por ser sua única forma de sobrevivência (a jornada do personagem é trágica em função do próprio pai e do alcoolismo) e, ao invés de oferecer carinho, possui um comportamento abusivo baseado em agressões, comentários machistas e maus exemplos. Por outro lado, admite, em dado momento, que apenas consegue fornecer lições pessimistas sobre a vida e sofre por não estar à altura da responsabilidade paterna.
“Honey boy” não é, portanto, nem um grito por empatia de Shia LaBeouf nem a busca por uma inocência forçada. É uma narrativa muito pessoal que reverbera no espectador e traça uma experiência ousada sobre a relação entre pais e filhos e passado e presente. Ao não fazer concessões sobre as dores, os as absurdos e os sofrimentos vividos por aqueles personagens, o filme constrói um humanismo muito palpável e contraditório. Basta ver como são as últimas cenas de Otis adulto, criança e de James, especialmente a do pai pedindo uma história que o tornasse ao menos alguém bonito. Nada mais humano do que buscar uma gota de alívio em meio a um mar de problemas.
*Filme assistido durante a cobertura da 21ª edição do Festival do Rio (21th Rio de Janeiro Int’l Film Festival).
Um resultado de todos os filmes que já viu.