“PANTERA NEGRA” – Apresenta pouco, mas representa muito
Provavelmente por faltar ousadia, PANTERA NEGRA é, em síntese, mais um filme comum de super-herói, com a única diferença da representatividade. Em razão desse fator, não é possível afirmar que o longa é desnecessário.
Dando seguimento ao Universo Cinematográfico Marvel (MCU), o filme se passa após os eventos de “Capitão América: Guerra Civil”, mais especificamente após a morte de T’Chaka, rei de Wakanda, deixando o trono para seu filho T’Challa. Retornando para a terra natal na companhia da general Okoye e da espiã Nakia, T’Challa será coroado como novo rei. Juntos, os três precisarão encontrar Ulysses Klaue, que tem uma dívida histórica com a nação.
O filme não é desnecessário, mas é um filme tardio: até então, a Marvel tinha produzido 385734731 filmes com super-heróis homens e de padrão físico europeu, todavia nenhum foi protagonizado por uma mulher e/ou uma pessoa negra. Agora, finalmente um menino negro pode se identificar com um super-herói: é a questão da representatividade, já mencionada. Há quem sustente ser isso irrelevante: quase com certeza esse discurso tem como emissor uma pessoa de pele branca, o que significa que teve a oportunidade de, na sua infância, se enxergar como Superman ou Mulher-Maravilha, por exemplo (sim, são exemplos da DC – até porque a Marvel ainda não fez um filme de super-heroína -, mas a ideia continua válida). Hoje, é socialmente benéfico que exista uma variedade maior de super-heróis.
A representatividade se refere tanto ao super-herói negro quanto às coadjuvantes femininas, cuja personalidade forte refuta ao máximo a ultrapassada ideia da donzela indefesa da ficção. As mulheres de Wakanda são bravas guerreiras, cuja autonomia se refere tanto no plano das ideias quanto no das ações. Shuri, irmã de T’Challa, é a responsável pela tecnologia do país, sendo um verdadeiro gênio na tecnologia high tech. Letitia Wright, intérprete da personagem, é eficaz ao dar todo o viés cômico a ela, em especial pelo paradoxo inteligência precoce – mentalidade pueril. Isto é, apesar de Shuri ser muito inteligente, ela continua tendo uma criança em seu interior. É um prato cheio para piadinhas infantis e óbvias – afinal, se não tivesse piadas infantis, não seria um filme Marvel -, como quando ela filma o irmão golpeando o traje. Outro suporte de T’Challa é Nakia, por quem ele é apaixonado. É um papel aquém do talento de Lupita Nyong’o, mas demonstra que ela não foi esquecida após o Oscar. O problema acaba sendo o romance entre T’Challa e Nakia, desenvolvido pavorosamente. Se ela é sua ex-namorada, por que ele “congela” quando a vê? E por que ela é tão relutante em se entregar a ele? Várias especulações podem ser feitas, o que não muda o fato que a película falha ao não explicar o histórico do casal. Das personagens femininas, a general Okoye é a mais interessante: inteligente, racional, corajosa e exímia lutadora, ela é fundamental em diversos momentos. Danai Gurira é uma atriz ainda pouco conhecida, mas, considerando esse trabalho, seu talento é imenso. Cabe a ela atuar nos momentos mais sérios, já que a personagem é mais séria, contudo os momentos mais leves também existem e a atriz se dá igualmente bem. A decepção fica com a Rainha-mãe vivida por Angela Bassett, irrelevante e um pouco frígida (ao menos para uma recém-viúva).
Embora seja plurilocal, grande parte dos acontecimentos do longa ocorre em Wakanda, país cuja mística prometida no MCU foi explorada verticalmente. A ideia de patriotismo recebe muita ênfase, pois logo no início uma traição é censurada. É também nesse raciocínio que duas personagens apresentam o debate ideológico da diferença entre salvar o país e servir o país: no primeiro caso, regras preestabelecidas se tornam inócuas ante um objetivo maior que é o bem da nação; no segundo, há que se obedecer cegamente a ordem instaurada, ainda que haja uma discordância íntima. Isso faz sentido, em se tratando de um filme com forte viés político, no qual até mesmo o vilão consegue proferir um brevíssimo discurso sobre colonialismo. É também o vilão que defende de maneira aguerrida a ideia segundo a qual a solução para o fim da opressão seria municiar os oprimidos – evidentemente, uma ideia deveras ingênua. A matéria tem relação com outra, um pouco mais aprofundada, referente à ajuda aos refugiados, temática bastante contemporânea em política internacional. As personagens ficam divididas: algumas acreditam que Wakanda deveria “se abrir para o mundo”, ou seja, compartilhar sua tecnologia e seus conhecimentos, outras são contrárias – e uma das personagens oscila (W’Kabi incoerentemente muda de opinião). Trata-se, enfim, de um debate raso sobre (neo)globalização e fraternidade internacional, o que é novidade no MCU. Melhor que seja raso do que ausente: a maioria dos filmes do MCU tinha enfoque no individual.
A exibição de Wakanda é um traço marcante da direção de Ryan Coogler, que vem crescendo na carreira, mas ainda tem em “Fruitvale Station” sua melhor produção. “Pantera Negra” tem um subuniverso diegético bem completo em relação a Wakanda (“subuniverso” porque inserido no MCU), com uma identidade marcante, envolvendo, por exemplo, idioma próprio. Um dos melhores atributos do longa é certamente seu rico design de produção, envolvendo maquiagem e figurinos criativos – cuja criatividade, aliás, é plausível e não se desloca das raízes africanas -, bem como interessantes adereços (colares, alargadores etc.). Também a trilha sonora tem suas veias nos ritmos africanos, com batidas de tambor bem típicas, sem deixar de lado músicas mais contemporâneas e coerentes com a película, como algumas de hip hop. O 3D é bom (merecem atenção os planos em que a nave aparece nas cataratas, dando uma noção realista de profundidade) e o visual é belo, como os planos abertos e gerais exibindo a beleza natural do local. Contudo, o exagero de CGI dá uma artificialidade decepcionante à película, que parece ter sido filmada inteira em chroma key (as cenas no plano ancestral, por exemplo, são vergonhosas para um filme desse calibre). Outro problema é que Coogler prioriza planos fechados nas lutas, prejudicando a ação e a visibilidade dos golpes.
Do ponto de vista narratológico, o roteiro é bastante previsível, mas bem encaixado, sem excessos substanciais ou furos gritantes (até Everett Ross, papel reprisado por Martin Freeman, tem uma função). Outra novidade é que finalmente aparecem vilões mais razoáveis no MCU (ainda que muito inferiores a Loki, que é soberano nessa área): Andy Serkis faz de Ulysses Klaue um vilão mais padrão, dentro da proposta; o Erik Killmonger de Michael B. Jordan é um antagonista coerente, uma máquina de vingança cujo ímpeto leva à irracionalidade (Chadwick Boseman é também satisfatório). O plot, como não poderia deixar de ser, prioriza T’Challa, mas abre espaço para o arco dramático de Erik e, em determinado momento, permite que Nakia assuma a condução da narrativa, sem nenhuma queda de nível. Por outro lado, o texto é inverossímil em diversas partes, ainda que considerada a suspensão da descrença. Exemplos não faltam: em Wakanda tudo é mais evoluído (Okoye chega a afirmar que armas de fogo são primitivas, como se lanças fossem armas progressistas), contudo a diplomacia é desconhecida para o local, em que se respeitam rituais violentos, em detrimento de uma lógica monárquica autêntica (se eles são tão evoluídos, não seria melhor a disputa pelo poder de uma forma menos rústica?), e onde a vingança é priorizada em relação a um julgamento justo; o vilão, durante uma fuga, pede para um de seus capangas colocar uma música no rádio, como se essa fosse sua preocupação prioritária; e, como já mencionado, W’Kabi, total e repentinamente, muda seu ponto de vista sobre a contribuição de Wakanda na ordem mundial. <<SPOILER ALERT: nesse último caso, a solução óbvia para a inverossimilhança é que W’Kabi se sentia em dívida (uma dívida de gratidão) com Erik, o que fez com que ele adotasse o posicionamento do antagonista. Contudo, isso poderia torná-lo neutro ou mesmo favorável, mas não teria o condão de mudá-lo tanto, tornando-o defensor ferrenho do entendimento oposto ao anterior (do qual também era defensor ferrenho). Ou seja, não faz sentido. FIM DO SPOILER>> Algumas inverossimilhanças existem a pretexto das piadas (como quando o vilão exige uma música para a cena), o que é ainda pior, pois, a prioridade deveria ser um texto consistente.
As duas cenas pós-créditos elucidam um pouco o que é “Pantera Negra” enquanto filme. A primeira é continuação do desfecho – que, ressalte-se, é bom -, portanto acaba por ser redundante, com a diferença que é mais explícita. A segunda é um pouco melhor, mas sem muita relevância. São cenas que pouco agregam e que nem precisam ser vistas, faltando ousadia para anunciar algo mais chamativo (como ocorre em “Thor: Ragnarok”). Apesar de politicamente engajado, o longa não tem potencial para fazer história pelo que apresenta, mas sim pelo que representa.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.