DENTE DE LEITE – Desidratação da plateia [43 MICSP]
Um novo “A culpa é das estrelas”? DENTE DE LEITE pode flertar com essa referência, já que tem elementos em comum. Porém, ao contrário do que pode parecer, é mais complexo e muito menos adocicado.
No longa australiano, Milla é uma adolescente com uma grave doença que se apaixona com Moses, um pequeno traficante – o que acaba sendo o pior pesadelo dos pais da garota. Sentindo que não tem nada a perder, Milla encontra em Moses uma alegria de viver, ignorando os parâmetros dos pais sobre como deveria se comportar.
“Dente de leite” tem alguns momentos cômicos (como a piada sobre a credibilidade das informações constantes na internet e o início da conversa noturna entre Anna e Moses), contudo o que prevalece é um drama que não recai no melodrama. A doença de Milla serve como pano de fundo do plot, centrado no ambiente familiar da garota. A rigor, o filme é um drama familiar. A paixão da protagonista por Moses acaba sendo a catapulta para um dos conflitos no seio da sua família.
Interpretado com intensidade elogiável por Eliza Scanlen, Milla enxerga na doença um abismo em direção ao qual está se deslocando, o que a motiva a viver intensamente. A garota recorda a todos o significado da expressão carpe diem, o que ela quer é ser feliz enquanto estiver viva – algo que as pessoas ao seu redor, sem perceber, simplesmente não conseguem. Quando ela briga com o pai porque ele acha que ela não conseguiria lidar com uma rejeição masculina, o que ela quer dizer é que não quer ser blindada dos reveses de uma vida comum.
No papel do genitor está Ben Mendelsohn, ator que justifica a sua escalação em apenas uma cena – o momento, contudo, é avassaladoramente tocante. No mais, Henry se reduz à âncora aparentemente racional do núcleo familiar de Milla. Diversamente, Essie Davis é muito mais passional enquanto Anna, mesmo quando anestesiada pelas substâncias ministradas pelo marido psiquiatra. Para ele, os remédios resolvem tudo. No caso dela, o backstory com a música simboliza os pais que abandonam os próprios sonhos pelos filhos, o que é capaz de gerar uma mágoa irreversível. Ambos, de maneiras distintas, querem proteger a filha.
É nesse contexto que a aparição de Moses – inicialmente conflituosa em relação à própria Milla – se torna oportuna. Vivido de maneira excelente por Toby Wallace, o garoto é assustador para os pais da aparência à conduta. Como poderia alguém como Milla (não custa mencionar o abismo socioeconômico do casal adolescente) se relacionar com alguém como ele? “Aquele garoto tem problemas”, como afirma Anna, no que Milla responde, inteligentemente, que também tem. Moses não é uma provocação da filha para os pais, mas um interesse afetivo genuíno justamente por vir de uma realidade desconhecida pela protagonista. Não importa se ele é usuário e traficante de drogas, o que ele quer é ser feliz enquanto puder – algo que todos naquela família precisam aprender. O conflito entre os quatro é constante e toma um caminho distinto do que o público provavelmente prevê.
A inteligência do roteiro de Rita Kalnejais reside justamente na narrativa coesa por não fazer concessões. É claro que há momentos ternos, geralmente embalados pela trilha musical eclética de Amanda Brown, que vai do erudito de Mozart ao folk de Vashti Bunyan (“Diamond day”), passando pelo pop-rock de Donnie & Joe Emerson (“Baby”) e pelo indie – o conceitual de Tune-Yards (“Bizness”) e o pop de Mallrat (“For real”). Não obstante, a trama tem por base a complexidade das relações familiares, demonstrando que, de certa forma, estão todos doentes. A diferença é que Milla está passando para a fase adulta, seu dente de leite representa a infantilidade que ela quer abandonar. Quando Moses aceita seu convite para o baile, a garota explode de alegria como uma criança, mas até mesmo o relacionamento entre os dois “é complicado” (parafraseando o próprio jovem). Alia-se a isso uma inversão cronológica em um momento-chave, que acerta porque concede a emoção que o filme exige.
A direção de Shannon Murphy tem como trunfos uma boa mise en scène e um elenco afinadíssimo e envolvente – além de muito bem caracterizado. O figurino de Amelia Gebler, de um lado, fornece verossimilhança às personagens. Moses, por exemplo, se veste com plena liberdade (bem imaterial que Milla mais deseja), sempre com camisas largas e shorts bem curtos. Acessórios, como as tatuagens (até no rosto), o corte de cabelo nada tradicional e o cavanhaque crescido, dão a ele um visual que reforça a aversão de Anna e Henry ao que ele representa. De outro, o vestuário usa cores simbólicas, como o lilás (representando a conexão) de Milla e Moses na sequência da festa e o rosa da camisola de Toby (denotando sua feminilidade).
Por fim, há dois equívocos consideráveis na película. O primeiro é a prejudicial divisão em capítulos, que, em que pese agilizar a trama em razão da velocidade dos episódios (são sempre capítulos bem curtos), desnecessariamente adianta, através dos títulos, o conteúdo do que se segue – o que atenua a comoção da cena. O segundo equívoco é abandonar as subtramas, deixando lacunas demasiadamente grandes. Nesse sentido, não fica claro o que mudou entre Henry e Anna para se afastarem (dado que aparecem bem próximos no começo), alguns coadjuvantes em nada colaboram na narrativa (em especial Toby e o professor de música) e o arco dramático de Moses no que se refere à família é inexplicavelmente negligenciado (como ele consegue a companhia de Isaac após a cena natalina?). Com o desfecho tocante que o filme tem, todavia, esses problemas empalidecem e a experiência desidrata a plateia mais sensível.
* Filme assistido durante a cobertura da 43ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.