“DOWNTON ABBEY: O FILME” – Choque de eras
DOWNTON ABBEY: O FILME nasceu da adaptação da série de TV homônima produzida pela Carnival Films e veiculada no Brasil pela Globosat HD. Diferentemente das alegações feitas por alguns espectadores sobre o caráter novelesco do seriado, o mesmo não pode ser dito do filme. Isso porque a narrativa possui uma densidade temática articulada a uma linguagem sutil e eficiente que a faz ser uma produção voltada para a tela grande do cinema. Assim, se explora a situação da monarquia britânica no início do século XX a partir do choque entre tradição e modernidade.
Em sua versão cinematográfica, a história continua acompanhando a aristocrática família dos Crawley após a tragédia do Titanic. O ano é 1927 e os moradores de Downton Abbey estão em polvorosa com a oportunidade de receberem o rei e a rainha da Inglaterra enquanto estes participam de jantares, bailes e desfiles por seu território. Além do trabalho de recepção, acolhida e atendimento da família real, o acontecimento desperta intrigas políticas, atritos entre classes sociais incertezas quanto ao futuro de um país em transformação.
A monarquia britânica se desenvolveu do século XV até o século XX também cultivando uma cultura aristocrática que influencia no modo de agir dos seus habitantes. Outros elementos, além da dimensão do poder político, estão em jogo: a dimensão simbólica da autoridade real e de quem está ao seu redor; a questão da linhagem e dos descendentes para a herança e para o prestígio da família; a ostentação material das festas, banquetes e palácios; e as noções de etiqueta nas cerimônias oficiais. A produção demonstra a influência da aristocracia tanto no deslumbramento e na ansiedade dos patrões e empregados da residência em receber o rei e a rainha quanto na forma como Michael Engler filma esse aspecto histórico. Cada plano geral utilizado destaca a imponência das mansões e a grandiosidade das danças, dos desfiles e das refeições reais.
Entretanto, a narrativa se atém mais aos desafios enfrentados pelo governo monárquico em novos tempos. O primeiro deles é manter sua áurea pomposa e um grau de importância que faça a população se sentir orgulhosa em servi-lo. Nesse sentido, o roteiro aponta como barreiras a nova geração – representada por uma jovem cozinheira que questiona as razões para a suposta superioridade dos monarcas – e os embates entre os lacaios da família real e dos anfitriões – encontrados na disputa pela definição de qual equipe realizaria as tarefas do jantar principal. O segundo ponto é de uma riqueza dramática considerável: a câmera fluida atravessa os aposentos da moradia com longos planos, mostrando a dinâmica do local e a separação geográfica e social das classes; e um caráter contestador dos empregados da propriedade, em não aceitarem a intrusão de funcionários de fora, estimula uma identidade coletiva entre eles ligada ao lugar.
Outro desafio enfrentado é a relação entre os nobres e as classes mais baixas. Nesse tipo de sociedade, o convívio íntimo e estreito de ricos e poderosos é condenado se não for estabelecido através da dominação, assim como a ascensão social de indivíduos de origem simples não exclui a permanência do preconceito que sofrem. Tais casos recobrem a trajetória de Tom Branson (ainda excluído pelos Crawley mesmo depois de começar a fazer parte da família e Lucy (mal vista por conta de sua origem humilde e sua posição tão próxima de Lady Bagshaw). Além disso, o próprio universo elitista tem suas contradições, exemplificadas pelos irônicos diálogos entre Lady Bagshaw e Violet Crawley que insinuam cordialidade, mas transmitem a disputa por poder nas entrelinhas.
O próprio período histórico em metamorfose também cria novos obstáculos para os aristocratas e suas tradições. O mundo se encontrava em estágio de transição que enfraquecia os grandes impérios, assistia à emergência de novas tecnologias e remodelava as organizações sociais para valores burgueses. Em razão disso, o roteiro pontua diversos elementos que exigiam da monarquia um processo de adaptação às mudanças: surgimento de novas ideias políticas, como o comunismo; a realização de protestos variados, como as greves de trabalhadores e movimentos de irlandeses pela independência em relação ao Reino Unido; e a diversificação de identidades, como os homossexuais encarando como podiam uma época de criminalização de sua orientação sexual. Para dar conta de tantos conflitos e temas, a narrativa abre um leque múltiplo de personagens vivenciando seus próprios arcos dramáticos e trabalha com desenvoltura cada um deles.
Diante das adversidades colocadas pelo século XX e apresentadas por “Downton Abbey: O filme”, o diálogo entre Violet e sua neta ao final do terceiro ato é sintomático das condições políticas da Inglaterra no período. A monarquia poderia até sobreviver, porém ela nunca mais seria como havia sido antes da matriarca, durante sua época de glória e após sua morte dadas as transformações inevitáveis do país. Inevitabilidades essas que se refletem no retrato feito pelo filme sobre a Coroa britânica e seus representantes sem idealizações descabidas, inserindo-os em um confronto contínuo com a história e com diferentes sujeitos históricos.
Um resultado de todos os filmes que já viu.