“CADÊ VOCÊ, BERNADETTE?” – Piegas, cafona e adorável
“Se você está perdido(a), você pode olhar e vai me encontrar”. “Se você cair, eu vou te segurar, vou estar esperando”. Esses trechos da canção “Time after time” (em tradução livre), usada como Leitmotiv de CADÊ VOCÊ, BERNADETTE? expõem bem a ideia central do longa: as pessoas precisam de ajuda. O filme vai ainda mais longe: a primeira ajuda – e mais primordial – é a fornecida para si próprio(a).
No longa, Bernadette Fox é uma arquiteta renomada que sumiu dos holofotes em razão da dedicação à família. Com o passar dos anos, ela negligenciou a si mesma, o que afetou o seu psicológico, desenvolvendo fobia social, misantropia e depressão. Quando ela desaparece do lar, seu marigo Elgie e sua filha Bee precisam entender sua condição para então encontrá-la.
Baseado no livro original de Maria Semple, o roteiro escrito a seis mãos por Richard Linklater (que também dirige a película), Holly Gent e Vince Palmo é voltado à motivação pessoal, o que resulta em uma obra de autoajuda motivacional. Em determinado momento, a narração voice over ensina que, se uma pessoa está entediada com a própria vida, quanto mais cedo ela entender que depende dela mesma torna-la interessante, melhor será. Pessoas precisam de motivação. A dedicação a outrem pode motivar, mas não basta.
Bernadette é uma mulher de perfil relativamente convencional: abandona a carreira para cuidar da família. Enquanto a filha cresce e é educada por ela, o marido/pai continua trabalhando para garantir o sustento dos três. Mas Bernadette foi um ícone, conhecida como pioneira da arquitetura sustentável. Seu backstory é exibido de maneira orgânica, através de um documentário disponível na internet, de cuja existência ela sequer sabia. Assim, através da linguagem documental (a que o espectador assiste através dos olhos dela), descobre-se o quão promissora ela era. A vida no lar não era infeliz, pelo contrário, ela e a filha nutrem uma relação muito próxima (a ponto de a segunda afirmar ao pai que, enquanto este trabalhava, elas se divertiam). Só não era suficiente para uma pessoa com o perfil de Bernadette.
Não fica muito claro como a protagonista chegou ao estágio em que aparece no filme – fugindo de quaisquer tipos de aglomeração de pessoas e com dificuldade imensa de interagir com quem não seja o marido e a filha. À primeira vista, isso parece exagerado, mas seria insano negar que algumas pessoas sofrem de psicopatologias que, sem tratamento adequado, podem levar a consequências gravíssimas (como automutilação e suicídio). O assunto é tratado de maneira leve, o que não significa que não é relevante ou sério. Na fragilidade psicológica, Bernadette entra em uma espiral depressiva, recorrendo a fármacos de efeitos colaterais potencialmente lesivos (e que talvez nem lhe fossem adequados) e a uma pessoa misteriosa com quem se comunica na internet. No segundo caso, surge um subplot interessante, abordado en passant, referente à incógnita que a internet pode ter do outro lado da tela.
O filme tem lances de comédia, nada hilário, mas que consegue dissolver o teor cáustico que poderia ter se fosse exageradamente sério. O prólogo in media res mostra Bernadette sem a família, deixando o público curioso para saber como ela chegou lá – logo ela, que não queria socializar com outras pessoas. A profissão da protagonista serve como metáfora para a sua trajetória: ela se construiu enquanto “dona de casa”, mas precisa se reconstruir para reencontrar a satisfação pessoal. Vivido por um Billy Crudup não muito inspirado, Elgie é um marido que tenta ajudar a esposa, mas não sabe bem como fazê-lo, incorrendo em abordagens escancaradamente não recomendáveis. Por exemplo, o simples fato de levar Soo-Lin (Zoe Chao) em casa é suficiente para irritar a esposa. Contudo, é nesse contexto conturbado, no clímax dramático, que a protagonista encontra seu plot twist de vida, autorizando-se a enfrentar seus medos.
Bernadette é uma personagem complexa, o que revela Cate Blanchett como ótima escolha para o papel. Não é o seu melhor trabalho, tampouco o mais criativo, todavia ela se diverte ao encarnar uma mulher um pouco excêntrica, mas ainda assim bastante real. Quando não é ela o centro das atenções, Emma Nelson assume bem os holofotes como Bee, a filha do casal Fox. Também no elenco de apoio está Kristen Wiig, com uma personagem que, além de fundamental na narrativa, tem um arco dramático instigante (considerando tratar-se de uma coadjuvante), relativo ao relacionamento com o filho. Pode demorar, mas Audrey e Bernadette percebem que todos têm problemas.
Linklater quer matar a sua plateia. É uma morte de fofura, como a mencionada por Bernadette. Se ela parece antipática na primeira parte da trama, com uma caracterização impessoal (cabelo channel, óculos escuros, casacos largos, echarpe e vestuário de cores frias como o cinza), a mudança pela qual ela passa a torna mais humana (o que se reflete no figurino, que passa a adotar cores quentes). O diretor não quer chamar a atenção, usando recursos estéticos discretos e uma estilística minimalista. O foco está na trama e na protagonista.
O filme é piegas e cafona em diversos momentos, o que o torna adorável. Não haveria música melhor que “Time after time” como Leitmotiv, uma canção antiga, nostálgica para alguns, da qual é impossível não se afeiçoar. Se é um filme de autoajuda, tanto faz. Cafona mesmo é ficar inerte quando é preciso se reconstruir.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.