“MEU NOME É DOLEMITE” – Blaxploitation hoje
O blaxploitation foi uma tendência cinematográfica na década de 1970 nos EUA que abrangia filmes de baixo orçamento protagonizados e realizados por negros para, principalmente, negros. Explorando a violência, o erotismo e temas de seu interesse e realidade, bem como deixando os brancos em papéis menores, o movimento marcou as lutas sociais daquela população. Tendo com base esse recorte, MEU NOME É DOLEMITE narra a trajetória de Rudy Ray Moore para resgatar o estilo para as novas gerações.
O biografado é visto, inicialmente, como um vendedor de discos em uma loja pequena e comediante sem sucesso. A vida de Rudy começa a mudar quando renova o seu repertório de piadas com histórias repletas de ofensas e palavrões ouvidas nas ruas. Não demora muito para que se torne bem-sucedido e migre das casas de show humildes para discos extremamente populares para a população negra norte-americana. Após se estabelecer na área, decide expandir os horizontes rodando um filme sobre seu alter-ego Dolemite, um cafetão que sabe lutar kung fu. Porém, ele não contava com os obstáculos para filmar e exibir seu projeto.
A primeira maneira de recuperar o estilo setentista em questão é definir a ambientação daquela década. Então, a composição dos personagens segue a moda até então vigente: o penteado black power dos negros e as costeletas a la Elvis Presley dos brancos; e os figurinos de cores fortes e extravagantes cada vez mais acentuados à medida que o protagonista e seus amigos prosperam na vida e na carreira – as vestimentas trazem combinações incomuns de golas altas, botões e coletes chamativos e trajes que remetem a mantas religiosas e a adereços de cowboys. Ademais, o filtro de luz sépia constante confere um tom de época idealizado à narrativa.
Concomitantemente, o próprio filme original Netflix assume o estilo do blaxploitation ao contar jornada de Rudy e de Dolemite pelo cenário artístico do período. Tanto as tentativas da gravação de um álbum de música quanto de consolidação do show de stand-up só decolam quando há certa “apelação” do conteúdo: a falta de oportunidades e as desconfianças quanto ao seu potencial são superadas por sua obstinação em atingir seu sonho e reconhecimento e, especialmente, por extrair inspiração nos contos de mendigos pelas ruas. Assim, o roteiro trata de uma dimensão provocativa relacionada ao humor ofensivo e constrangedor de palavrões e referências sexuais, que agrada o nicho da população negra que se converte em público-alvo.
Se sua carreira artística já possuía alto grau de sensualidade e provocação (não só nas menções q sexo no conteúdo, mas também nas cenas de nudez nos álbuns), quando entra no mundo cinematográfico isso se intensifica. Reunindo uma equipe de amigos, profissionais do ramo e estudantes da área, ele concebe um filme que entrelaça elementos muitos díspares: questões sociais, como corrupção e prostituição, e outros aspectos variados, como uma mal coreografada luta de kung fu e uma cômica sequência de sexo. Tentar balançeá-los rende momentos engraçadíssimas – a conversa entre Rudy e seu roteirista, por exemplo – e demonstra a possibilidade de um engajamento político através do simbólico e da representação social dos negros.
Do mesmo modo que o roteiro o faz, a estética da narrativa também se relaciona ao gênero do passado graças ao ritmo que adota. O diretor Craig Brewer utiliza a música enquanto parâmetro das cenas, encadeando-as de acordo com as batidas do soul music ou do rap. Por conseguinte, a montagem fica dinâmica, os acontecimentos se sucedem em uma velocidade atraente e a trilha sonora ganha peso tanto na ambientação extradiegética quanto na caracterização diegética dos atores e das situações pelas quais passam. O cineasta já havia feito algo semelhante em “Ritmo de um sonho” e aqui faz com que suas escolhas estilísticas abram espaço para o universo negro daquele contexto e suas características (estilos musicais, temas sociais pertinentes e as diferentes relações com os brancos).
A criação de mundo igualmente depende do elenco, ainda que o destaque imediato recaia sobre Eddie Murphy. Após vários trabalhos infelizes nesse século, cria um tipo absolutamente à altura de seu talento: carismático para se identificar; obstinado em concretizar seus objetivos; cômico por unir canastrice, malandragem e erotização; e habilidoso em criar textos dentro de uma batida acelerada. O carisma também pode ser notado nos personagens coadjuvantes da trupe de Rudy, todos eles envolvidos na produção cinematográfica: os amigos responsáveis pela parte técnica – mesmo desconhecendo o que deveria ser feito; a atriz Lady Reed, vivida por Da’Vine Joy Randolph por com uma força dramática que a faz ser independente na vida pessoal e cativante nas apresentações vibrantes de stand-up; e o diretor da obra D’Urville, interpretado por um Wesley Snipes à vontade em um a figura caricatural, afetada e blasé que se coloca acima dos outros apenas por ter sido figurante em “O bebê de Rosemary“.
“Meu nome é Dolomite” vem sendo cogitado na próxima temporada de premiações. Não é um absurdo elogiar a produção original Netflix a esse ponto, já que seu propósito é claramente apontado e admiravelmente atingido: homenagear o blaxploitation, resgatando-o para aqueles que não o conhecem e sendo esse próprio gênero em uma comédia musical cheia de energia. Além disso, oferece uma belíssima recriação de época, um registro da cultura negra norte-americana da década de 1970 e um elenco afiado sob o comando de um inspirado Eddie Murphy.
Um resultado de todos os filmes que já viu.