SYSTEM CRASHER* – Derruba qualquer um [43 MICSP]
* Em sua estreia oficial no Brasil, em 5 de novembro de 2020, o filme recebeu o título nacional de “Transtorno explosivo“.
Se transtornos psiquiátricos são difíceis de lidar em se tratando de adultos, a dificuldade é ainda maior quando quem os tem são crianças. SYSTEM CRASHER tem como tema essa dificuldade imensa, retratando um caso que fatalmente deixa o espectador, no mínimo, perplexo.
A criança em questão é Benni, de nove anos, que faz tratamento para controle da raiva. A menina é tão agressiva que nenhuma escola a quer (tendo sido expulsa das que frequentou) e até mesmo sua mãe tem medo dela. Micha, um mediador escolar experiente com adolescentes raivosos, é a última esperança dos responsáveis por Benni para torná-la mais sociável.
O filme é o primeiro longa da diretora e roteirista Nora Fingscheidt, que começa em altíssimo nível. A obra é fenomenal, abordando de maneira sólida uma matéria densa e espinhosa (assumindo a inexistência de soluções fáceis), do ponto de vista racional, ao mesmo tempo em que causa reações no público.
É impossível ficar indiferente ao comportamento de Benni, inicialmente, pela violência gráfica. As agressões (verbais e físicas) perpetradas por ela certamente podem causar incômodo na plateia mais sensível, mas é justamente essa a ideia. O contexto não é brando, então a película apenas segue o ritmo robusto do conjunto. Existem golpes e até mesmo sangue, sem sensacionalismo, mas visíveis na medida suficiente para impressionar. Se a protagonista tem esse perfil violento, é coerente mostrar a violência, atenuada, em parte, por cortes e enquadramentos precisos. Mas não é exagero alertar que é um filme de fortes emoções – sendo essa a proposta, esse é o principal mérito do longa. Nada ali é gratuito.
Para corroborar a adrenalina – usando aqui um eufemismo – de Benni e sua conduta, Fingscheidt usa dois recursos principais. O primeiro é o Leitmotiv da menina, consistente em um rock instrumental primordialmente pesado, com intenso uso de percussão (membranofones e idiofones) – a trilha musical, aliás, é ótima. O segundo reside na filmagem em si, considerando que os enquadramentos sempre tentam privilegiar Benni e que esta é seguida quando em movimento. Nesse caso, muita câmera na mão, causando um balanço que eleva a adrenalina, e movimentos de uso pontual, como o chicote.
Na fotografia, a cor rosa é utilizada para recordar o espectador que Benni é apenas uma criança, isto é, realça seu lado pueril. Não por outra razão, quando ela tem seus “apagões” ou pesadelos, a tela fica rosa, justificando sua vulnerabilidade decorrente da idade. E isso também é muito importante: antes de tudo, ela é uma criança, o que significa que seu tratamento precisa ser cauteloso para não causar feridas incuráveis. O lado racional está nesse aspecto da trama – se fosse adulta, a ela seriam ministrados remédios fortes e/ou ela seria internada, mas isso não é possível no caso dela. Trata-se de um impasse de dificílima solução.
É nesse contexto que Micha surge como uma luz no fim do túnel – mas longe de qualquer garantia de êxito. Não obstante, vale mencionar o óbvio: o longa não vai para o clichê do feel good movie do professor que doma o aluno indisciplinado e eles vivem felizes para sempre. Micha usa uma pedagogia heterodoxa, por exemplo ao fazer apostas com a menina. Talvez ele tenha razão, ela pode apenas precisar de paz e de atividades que a permitam extravasar a energia abundante. Contudo, ela não é apenas uma criança rebelde, vai muito além dessa noção.
A aparência da pequena Helena Zengel (loira, olhos claros, pele bem branca), quase angelical, sugere uma personalidade cândida que não poderia estar mais distante da realidade diegética. Nas palavras de Benni, se alguém a incomoda, ela dá logo “uma porrada no nariz”. Impressiona a maneira visceral com que Zengel encarna a raiva desmedida da personagem, que pode ir de “a senhora é tão querida” para “cai fora” em pouquíssimos instantes. Com muitos (mas muitos mesmo!) gritos e uma fisicalidade adequada (a maquiagem corporal dos hematomas serve para imprimir realidade em relação aos atos de agressão), o trabalho da atriz mirim é excelente.
“System crasher” é um filme avassalador. Intelectualmente, as opções para o futuro de Benni soam como uma escolha de Sofia. Ainda que se trate de uma ficção, é extremamente real. Emocionalmente, o longa atropela o espectador como um touro indômito, com golpes duros, mas que não estão lá à toa. É uma experiência quase masoquista, um sofrimento similar à tarefa nobre de lidar com crianças difíceis. Tensa e intensa, a obra derruba qualquer um.
* Filme assistido durante a cobertura da 43ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.