PARASITA – Singular e sublime [43 MICSP]
Aviso: a presente crítica pode revelar informações da trama.
Que filme é esse!? É uma comédia? Um drama? Talvez, um thriller! Com tudo isso e muito mais, PARASITA pode ser qualificado, antes de tudo, como uma obra de arte singular. Essa é a conclusão imediata. Após alguma reflexão, outro adjetivo soa mais adequado: sublime.
O filme retrata a conexão que se estabelece entre duas famílias de diferentes condições socioeconômicas. Quando o filho da família desfavorecida começa a dar aulas de inglês para a filha da família abastada, a família do primeiro arquiteta uma maneira de colocar todos os integrantes na casa da segunda, inventando mentiras para serem contratados. É uma questão de tempo para essa arquitetura ruir.
A fábula escrita pelo diretor Bong Joon Ho e Jin Won Han é simplesmente genial. Sobrando imaginação e criatividade, a pluralidade de interpretações que a obra enseja apenas corrobora a sua riqueza artística. Mesmo parecendo reducionista (pois há muito além), tudo começa com o título, de uma sagacidade impressionante.
Em uma breve pesquisa na internet, o vocábulo “parasita” indica dois significados principais. No primeiro, denota o organismo que vive em outro, de onde obtém alimento e contra quem, geralmente, causa dano (é a relação parasitária estudada na biologia). No segundo significado, a palavra é usada de maneira pejorativa, referindo-se à pessoa que vive às custas de outra, por exploração ou preguiça. Os dois sentidos estão presentes no filme, dentre inúmeros outros extraídos da polissêmica produção.
Ainda na literalidade da narrativa, em uma primeira camada, o filme trata sobre planejamento. É o que está no texto: “ninguém deveria fazer planos; sem planos, nada pode dar errado”. Por mais engenhoso que possa ser a estratégia, sua falibilidade é inegável. Quiçá a filosofia do não plano se adéque mais ao carpe diem.
No subtexto, contudo, há uma segunda camada, muito mais ácida, relativa ao abismo socioeconômico. Quando a dona da pizzaria reduz o pagamento, é a detentora do capital determinando as regras em face de quem o receberá. Os perigos da agiotagem são meros desdobramentos das dificuldades financeiras. O odor de que os patrões reclamam (expressa e implicitamente) é o desconforto da proximidade da classe operária inferior – e que é inferior também do ponto de vista literal (basta ver o morro que Ki-woo sobe para chegar à casa). Não é sem motivo que Ki-woo e seu pai demoram para reagir à pessoa em situação de rua: estão contaminados pela soberba da vida burguesa que ilusoriamente estão vivendo, a mesma soberba que exige nomes em inglês (Kevin e Jessica) para dar credibilidade. Da mesma forma, a reação representa a mesma selvageria da cena do bolo: homo homini lupus. E não poderia ser mais óbvio, dado que o parasitismo implica conflito.
Embora possa parecer, não há maniqueísmo. Os “ricos” não são maus, são ingênuos. Eles até mesmo têm seus guilty pleasures, ainda que apenas em pensamento (como em relação às drogas). Mas também não são vítimas, basta perceber que a inundação tem consequências graves boa parte graças a eles. Já os “pobres” não são os vilões. Seus atos podem ser moralmente questionáveis (sobretudo por prejudicarem terceiros), mas o desemprego parecia um beco sem saída. O laço afetivo é muito mais firme entre eles (dificilmente Sr. Kim diria cinicamente que o sentimento nutrido pela esposa “pode ser chamado de amor”). Se fosse tudo uma questão de julgamento moral, o próprio filme soluciona o problema com seu desfecho (cada personagem, individualmente, tem o que, na ótica dos roteiristas, merece).
Os recursos imagéticos escolhidos por Joon Ho são inteligentíssimos. Ao mesmo tempo em que o ketchup anuncia a sequência seguinte, não é sem razão que os cachorros da casa seguem o patrão – se o Sr. Kim tem um odor desagradável por ser pobre, os animais se sentem atraídos pelo odor agradável de quem é rico (atração que o próprio Ki-woo causa em determinado momento, em seu auge). Enquanto a casa da família de Kim Ki-taek é escura e apertada, a casa de Da-Hye é bem iluminada, tem espaços amplos e uma arquitetura clean e moderna. Como televisões capazes de entreter, as janelas espelham o contexto de cada família: de um lado, a miséria; de outro, um espaço neutro e despido de preocupações. O design de som do longa é precioso: no prólogo, a tranquilidade sugere um feel good movie; no segundo ato, prevalece a música erudita, sempre acompanhando o ritmo da narrativa (a única música não instrumental é tão pontual quanto a cena em que surge).
“Parasita” não se encaixa nos parâmetros tradicionais de gênero cinematográfico. Mais do que isso, dispensa comparações com outros filmes, visto que nenhum outro constitui essa narrativa fabular única. Melhor dizendo, singular e sublime.
* Filme assistido durante a cobertura da 43ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.