“QUEM VOCÊ PENSA QUE SOU” – A realidade e as realidades
Ter beleza e juventude eternamente é uma pretensão antiga da humanidade, porém ainda não atingida. Na internet, por outro lado, é possível ser qualquer pessoa, criar uma vida falsa, mas dotada de tudo o que se quer e que não se possui. Algo tão satisfatório quanto perigoso. É esse o instigante ponto de partida de QUEM VOCÊ PENSA QUE SOU.
No filme, Claire, de cinquenta anos, decide monitorar seu namorado mais jovem, Ludo, criando um perfil falso em uma rede social, onde atende pelo nome de Clara. Quando ela interage com Alex, amigo de Ludo, Clara ganha contornos de uma identidade concreta – ainda que virtual -, de uma bela moça de vinte e quatro anos. Encantado, Alex se apaixona perdidamente por Clara, fazendo com que ele e Claire vivam uma fantasia que pode acabar sendo dolorosa para ambos.
Baseado na obra original de Camille Laurens, o roteiro de Safy Nebbou e Julie Peyr é bastante verborrágico, contemporâneo e extremamente profundo, além de denso e complexo. Talvez sua única lacuna resida na relação de Claire com seus filhos, que aparecem quase exclusivamente com função de alívio cômodo, sem função narrativa e nem simbólica. No mais, o texto aborda assuntos espinhosos partindo do mundo virtual: perfis fakes, stalker, relacionamentos virtuais etc.
Nesse contexto, Claire é uma personagem fascinante. Como ela mesma admite, a rede social é, concomitantemente, sua salvação e sua perdição, visto que é onde encontra a felicidade precária que a satisfaz. É na realidade virtual que ela se realiza, fugindo dos problemas e do que considera seus defeitos (mais especificamente, a idade). Pouco importa se Alex serve de instrumento para chegar a Ludo e, posteriormente, para conviver – sem saber – em uma esfera apartada do real. A internet dá espaço para exercitar a sua criatividade, de modo que Clara precisa ter contornos convincentes para manter Alex preso na teia.
O roteiro é dividido em três partes: na primeira (a mais longa), Claire relata para sua nova terapeuta o que aconteceu entre os três (ela, Ludo e Alex); na segunda, a terapeuta lê (além de imaginar e refletir) um texto escrito pela protagonista; a terceira é uma surpresa que deve ser preservada (esse spoiler estragaria a experiência). A dra. Bormans, interpretada com precisão por Nicole Garcia, serve inicialmente como recurso narrativo de reflexão, de certa forma, uma ferramenta de didática excessiva, salvo quando ela adota uma postura ativa na trama – que, ainda assim, poderia ser solucionado sem a utilização de uma personagem como intermediária (ou seja, no fundo, a narrativa poderia ser mais fluida, sem prejuízo substancial de conteúdo, sem ela).
Na primeira parte, a mais orgânica, Juliette Binoche domina a tela brilhantemente como Claire, conquistando o espectador com a sua fragilidade nociva (que atinge ela mesma, inclusive). Os diálogos são transparentes para demonstrar que, enquanto Claire é “ferida, subjugada e velha”, Clara é uma versão utópica de si, partindo da imagem de beleza e juventude que Claire considera não ter. Binoche faz um maravilhoso trabalho de voz para distinguir as duas, já que Alex poderia reconhecer a identidade vocal: para combinar com a imagem delicada, o timbre de Clara é agudo, e a maneira com que fala sugere introspecção e timidez, enquanto Claire é mais assertiva na fala e tem timbre mais grave. François Civil não vai mal nessa primeira parte do longa (quando praticamente não é visto), conseguindo transmitir emoções pela voz, mas Binoche tem muito mais destaque.
Em termos de construção de personagem, a profissão dos envolvidos é bastante simbólica: fotógrafo, Alex é um voyeurista nato, o que justifica que tenha sido tão paciente com Clara; esta trabalha com moda, área sofisticada o suficiente para torná-la atrativa para aquele; já Claire é professora, o que combina com sua personalidade carente de atenção. Em uma das sessões com a terapeuta, a profissional escancara que a protagonista tem uma necessidade vital de ser observada e admirada, pouco importando se a imagem não seja compatível com a realidade. Afinal, a voz, as palavras e as ideias são de Claire, não de Clara. Por outro lado, sem a imagem da segunda, a primeira seria ignorada por Alex.
É inclusive isso que acontece na cena que prepara a transição entre as duas primeiras partes da narrativa: Alex e Claire estão a poucos metros de distância, porém ele passa por ela, quase a esbarrando, sem trocar olhares, a despeito do olhar penetrante que ela desfere em face dele. Safy Nebbou demonstra nessa e em outras cenas a mise en scène exemplar da película – outro exemplo é a diferença do sexo com Ludo e Alex, porque são opostos (com Alex, de dia, deitados e de frente um para o outro; com Ludo, à noite, de pé e ela de costas para ele).
“Quem você pensa que sou” não é o melhor filme da prolífica carreira de Binoche, mas é um de seus melhores trabalhos de atuação – o que já é suficiente para que seja visto. Com uma protagonista humanamente dramática (sem exagero e sem melodrama) e dilemas tipicamente contemporâneos (a dificuldade do avanço da idade, a substitutividade por uma mulher mais jovem, a influência da internet nas interações sociais), a produção permite diversas conclusões, todas com o mesmo núcleo: a realidade pode não ser boa, mas é real.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.