“ADEUS À NOITE” – Quando as subtramas são mais interessantes
Ainda que não seja o objetivo, ADEUS À NOITE expõe, de maneira oblíqua, como nasce um terrorista não nascido em território tipicamente islâmico. Ainda lateralmente, a película questiona o conhecimento do outro. Porém, o foco do longa é o amor familiar e os sacrifícios que dele podem resultar. Paradoxalmente, as subtramas são mais interessantes que a trama principal.
A protagonista Muriel é uma dona de uma fazenda que treina jovens na equitação. Quando seu querido neto Alex, que não vê há anos, a visita, ela progressivamente percebe que ele não é mais o mesmo, parecendo um pouco sombrio. Convertido ao islamismo, sua nova crença assusta e preocupa Muriel quanto mais ela descobre o que ele tenta ocultar.
O roteiro, escrito por André Téchiné (este também diretor do longa), Léa Mysius e Amer Alwan, tem um fio condutor – o amor que Muriel nutre por Alex – que não chama a atenção por duas razões: não se sabe o backstory das personagens (isto é, não se conhece a formação desse afeto, colidindo até mesmo com o tempo em que ficaram afastados), bem como se trata de um tema pouco criativo. Para obter destaque, seria necessário criar elementos periféricos que enriquecessem a narrativa, ao invés de (como ocorre) ofuscar a trama principal.
No papel de Muriel, Catherine Deneuve justifica seu robusto currículo: a avó entra em uma espiral de perplexidade ao perceber o quanto o seu neto está mudado – ou, ao menos, que ele abraçou um perfil que ela até então desconhecia. Antes, ela não sabia que ele tinha religião; depois de apenas oito meses, ele se converteu ao islã e se tornou bastante fiel a essa fé. É natural a curiosidade, tanto quanto coerente é a aversão dele a revelar o que ela provavelmente consideraria obscuro. Surge uma grande indagação: até que ponto é possível conhecer outra pessoa?
Outra subtrama, igualmente instigante, é a protagonizada pelo próprio Alex, muito bem interpretado por Kacey Mottet Klein. A despeito da superficialidade do backstory da personagem, é visível a lavagem cerebral pela qual Alex passou. Klein adota uma provocante expressão de inquietação, reforçada pelo seu desempenho corporal ao constantemente mexer as pernas (como se estivesse sempre à beira de um ataque raivoso), uma postura de belicismo contido. No caso da sua namorada, Lila, vivida pela não comprometedora Oulaya Amamra, a abordagem da personagem é tão rasa que pouco se pode falar (o texto poderia ter adentrado um pouco nas barreiras profissionais que ela encontra).
Alex e Lila, unidos pelo hipócrita (já que não adota a rigidez que prega) e rude Bilal (interpretado assustadoramente por Stéphane Bak), conduzem a narrativa mais interessante do script: a inserção de um outsider ao Estado Islâmico. Com a internet, as fronteiras se dissiparam, o que torna plausível a celebração de rituais mediante videoconferência, por exemplo. A crença extremista já é bem conhecida, mas não por isso menos impressionante: morrer pelo islã é motivo de orgulho. No mesmo raciocínio, os atos censuráveis do trio são sempre justificados na ótica de que não há haram (pecado) contra infiéis (como se eles merecessem quaisquer males). Quando Fouad (aparição curta, mas ótima, de Kamel Labroudi) explica para Muriel o perfil do muçulmano recrutado, tudo faz sentido: não há um perfil predeterminado ou uma preferência, basta que o indivíduo perceba que, com a conversão, se torna relevante para uma comunidade. Dito de outro modo, a conversão dá visibilidade aos anônimos insatisfeitos.
A produção se utiliza de recursos imagéticos interessantes, tais como, dentre outros, o eclipse do prólogo (ideia do iminente escurecimento da vida de Muriel) e a cerejeira, geralmente associada, na cultura nipônica, aos samurais (indivíduos dispostos a se sacrificar por força de seus valores). A cor da moto de Lila e da blusa de agasalho de Alex não é à toa: o vermelho é relacionado ao belicismo proposto pela doutrina islâmica – ou ao menos (e a ressalva é relevante) da parcela a que Alex se filia, disposta a atos repugnantes por um fim pretensamente nobre, mesmo que assumidamente lesivo de imediato. O erro da direção é pontuar as datas em que a ação se passa, para indicar que o lapso temporal é exíguo, algo desnecessário no filme.
A montagem paralela de uma sequência é bastante elucidativa da diferença entre os muçulmanos e os não-muçulmanos: interação pessoal (segregação versus socialização geral), roupas (religiosas versus de descontração e exibição de parte do corpo), atividades (doutrinação versus dança ao som de “Chandelier”) e até mesmo o clima geral (sério versus alegre). Se o foco fosse esse, “Adeus à noite” seria mais cativante. Quanto ao relacionamento familiar, nem a excelente Deneuve tira o filme do comum.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.