“DIVALDO – O MENSAGEIRO DA PAZ” – Apreenda a mensagem, abstraia o mensageiro
A falibilidade humana faz com que ideias e atos sejam geralmente mais admiráveis do que pessoas. DIVALDO – O MENSAGEIRO DA PAZ elenca ideias, atos e pessoas que considera admiráveis, ignorando, justamente, o lado humano do seu protagonista. Trata-se da cinebiografia de Divaldo Pereira Franco, médium, líder espírita, filantropo e orador cuja vida tem sido de dedicação à caridade.
Dirigido por Clovis Mello e roteirizado por este e por Marina Moretti e Luciane Toffoli, o filme é bom enquanto produção cinematográfica. Há momentos em que fica clara a limitação técnica e orçamentária, com erros relativamente básicos – por exemplo, a maquiagem em Marcos Veras (este, razoavelmente bem) é extremamente falsa, há algumas quebras de continuísmo (como a folha que sai da fogueira e volta magicamente) e a mixagem de som é falha (é inaceitável que o choro do bebê fique mais alto que os diálogos).
Contudo, Mello apresenta uma direção consistente na mise en scène, através de metáforas visuais e cenas que conseguem emocionar. Há uso intenso de spinning shots (já no prólogo, inclusive, em volta de uma mesa redonda) e o cineasta atribui vivacidade à câmera, raramente estática; além disso, o “espírito amigo” movimenta-se constantemente em círculos, o que reforça simbolicamente a ideia da circularidade da vida e do não encerramento com a morte. Já na cena em que Divaldo caminha com sua mãe por um longo corredor em frente a uma Igreja, a ideia é transmitir uma noção de caminhada. É também a mãe do protagonista, interpretada irregularmente por Laila Garin, que fornece a cena que mais emociona, mesmo sem muitos artifícios sonoros (até mesmo diálogos sucintos).
A irregularidade da atriz se explica pelo ritmo apressado da primeira fase de Divaldo – estranhamente, a montagem, na segunda fase, utiliza sequências elípticas eficazmente. Na primeira etapa, João Bravo vai bem por aproveitar a espontaneidade infantil, mas não elimina o prejudicial atropelo do primeiro ato. Em consequência, todo o elenco vai mal, através de falas que soam artificiais e atuações nada convincentes. O melhor momento do filme é no segundo ato, quando Guilherme Lobo assume o papel de Divaldo (na segunda fase da vida) e demonstra conforto na tarefa. O ator protagoniza a película na sua maior parte e transmite com eficiência o longo processo de aprendizagem do médium. Bruno Garcia, amplamente explorado pelo marketing da produção (já que é sempre melhor colocar um ator famoso na divulgação), vive o papel de sempre: ele mesmo. De positivo, seu pouco tempo de tela.
Além da atuação de Lobo, merece elogios a ótima fotografia de Jean Benoît Crépon, que explora de maneira sólida a cor azul (celeste e tons próximos) para fazer associações imagéticas ao espiritismo – não deixando a tarefa apenas para o vestuário do “espírito amigo” bem interpretado por Regiane Alves. A atriz consegue driblar o excesso quantitativo e qualitativo de falas.
Na teoria, o filme é belíssimo em suas lições sobre amor, humildade, paciência e caridade. Inquestionavelmente, são ideais de humanidade dos quais a sociedade sempre carece. Quanto a isso, o filme se justifica, pois é sempre bom revisitar a fraternidade que é tão renegada por algumas pessoas. Também os atos de Divaldo, voltados à caridade, passam a receber maior publicidade com o filme, o que não é desmerecido, basta ver o legado construído desde os anos 1950.
Entretanto, tratando-se de uma cinebiografia ficcional (pois não é um documentário), o filme erra demais em dois aspectos. O primeiro é deixar lacunas, como a relação com o espírito obsessor (em que nem tudo é bem explicado, mas é mal resolvido) e, principalmente, com Nilson (será que a verdadeira natureza da relação entre eles é amizade?). O segundo, muito mais grave, é a beatificação equivocada de seu protagonista.
Do ponto de vista cinematográfico, é incômoda a exibição de um herói tão impecável, um ser humano tão perfeito. A questão não é se Divaldo sempre foi uma pessoa bondosa, mas o filme faz dele uma pessoa perfeita – o que certamente não condiz com a realidade. Na perspectiva da obra, ele não tem podres, erros ou arrependimentos, pois é resumido em amor e aprendizagem. Negligenciar as falhas de uma personagem humana é despi-la da sua humanidade e afastá-la da plateia.
Divaldo não é o ser perfeito que o longa exibe: foi acusado de plágio (fonte: clique aqui); escreveu que declarar Jesus como gay seria uma “tentativa de diminuir-lhe a dignidade” (fonte: clique aqui); homenageou João Dória pelo trabalho de caridade ao entregar ração humana (fonte: clique aqui); e, segundo a Associação Brasileira de Pedagogia Espírita, exerceu “sua imensa influência no movimento espírita para fortalecer posições retrógradas, anti-humanitárias” (fonte: clique aqui). Embora tenha dito que “não se pode levar religião para nenhum templo político” (fonte: clique aqui), entrou em contradição ao defender um slogan de um político que usou uma perspectiva religiosa (idem) e ao chamar Sérgio Moro de “presidente da República de Curitiba” (fonte: clique aqui). Estranhamente, algumas falas polêmicas registradas em vídeo foram retiradas da internet. Além de tudo isso, revelou ignorância ao afirmar que a ideologia de gênero é “um momento de alucinação psicológica da sociedade” (fonte: clique aqui) – quando, na verdade, sabe-se que essa é “uma expressão depreciativa usada por grupos conservadores contrários às discussões relacionadas ao feminismo, à sexualidade e à diversidade”, grupos que “acreditam que essa ‘ideologia’ faria parte de um plano mundial para destruir a família cristã e a heterossexualidade” (fonte: clique aqui). Ou seja, é uma falácia que aliena os não instruídos e serve de ferramenta para disseminar a discriminação.
O defeito do filme não é a imperfeição de Divaldo, que a internet não permite ocultar, mas fingir que ela não existe. O mensageiro é alguém questionável. O que é salutar é a sua mensagem.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.