“IT – A COISA” (2017) – Léguas à frente
Assistir a IT – A COISA pela primeira vez é uma experiência boa, tendo em vista que, ao contrário da maioria do gênero, o filme não abusa de jump scares, tem um roteiro robusto e atuações elogiáveis. Pela segunda vez, a sensação é ainda melhor e a produção pode expor mais camadas.
Na trama, um grupo de crianças se une para resistir ao bullying que sofrem, formando o “Clube dos Perdedores”. Em Derry, a pequena cidade em que vivem, outras crianças têm desaparecido misteriosamente. Depois de encarar visões esquisitas, eles acabam encontrando o palhaço Pennywise, responsável pelos sumiços.
Inquestionavelmente, o palhaço é o elemento mais fascinante do longa. A começar pela maravilhosa performance de Bill Skarsgard, que consegue ir além do apavorante. Seja pela voz fina, pela risada alucinada, pela saliva escorrendo pelos lábios, pela linguagem corporal ou pela pronúncia forte das palavras (seu “take it” é de dar arrepios), o ator dá a Pennywise uma interpretação fenomenal.
Andy Muschietti é extremamente eficaz para construir a atmosfera de tensão que cada cena precisa (por vezes, inteligentemente usando lentes teleobjetivas ou mudando a distância focal), como quando Georgie desce para o porão da sua casa, ou quando Ben é perseguido – no primeiro caso, prevalece o silêncio e a escuridão; no segundo, a luz pisca e o caminho é desconhecido. O espectador fatalmente começa a tensionar todos os seus músculos.
Não é só nesse sentido que a direção é muito boa. Quando exigido, o diretor cria cenas imageticamente estonteantes, quiçá com ápice na que ocorre no banheiro de Beverly. O CGI é de alta qualidade e usado na medida certa – isto é, sem recair em naturalismo (que não faria sentido, dada a fantasia inerente ao plot), tampouco em artificialidade (que aproximaria a película a uma animação). Há muita violência e muito sangue, o que pode causar alguma estranheza em razão do numeroso elenco infantil (que participa de algumas cenas não muito infantis). Maquiagem e figurino são excelentes (em especial em Pennywise), mas a fotografia de Chung-hoon Chung exagera na escuridão dos planos (acerta, por outro lado, no filtro vermelho na cena do banheiro).
O roteiro, assinado por Cary Joji Fukunaga e Gary Dauberman a partir da obra homônima de Stephen King, conta com duas engrenagens narrativas, uma real, outra, surreal. O lado realista da narrativa tem enfoque na vida escolar e suas dificuldades: por exemplo, quando Beverly (Sophia Lillis, ótima) está no banheiro da escola, quando Mike (Chosen Jacobs, sem muito espaço) é quase atropelado ou quando Ben (Jeremy Ray Taylor, convincente) é marcado na pele pelos bullies. Salvo por piadas episódicas, o drama não poderia ser mais real (crianças comuns sofrendo bullying). Normalmente a função de alívio cômico é exercida por Ritchie (Finn Wolfhard, impagável), cujo humor é verossímil para a idade. Ainda nesse viés da veracidade, as temáticas são ora sombrias (o pai de Beverly), ora edulcoradas (o primeiro amor). De certa forma, surpreende (ainda mais considerando o gênero) a sutileza quanto a algumas matérias, como no caso de Eddie (Jack Dylan Grazer, divertidíssimo), exemplo de criança asfixiada pela mãe.
Já o braço surrealista (ou sobrenatural) da narrativa encanta mais por Pennywise do que por qualquer outro motivo. É bastante simbólico que o palhaço sinistro tenha preferência em raptar crianças, não aparecendo para adultos, mas também não se importando em matá-los: se o medo é o que o alimenta, crianças costumam ter mais medo, então faz sentido que sejam suas vítimas preferidas. Porém, mais do que isso, a ingenuidade e a bondade infantil são o que o atraem, visto que que os adultos já estão, por assim dizer, corrompidos. Do ponto de vista diegético, flutuar parece significar morrer ou servir de alimento para o palhaço; metaforicamente, contudo, pode ser interpretado como o abandono da infância – afinal, não é à toa que, de todos os adultos mostrados, todos são ruins como pessoa (até mesmo o caixa do mercado, que é facilmente seduzido por Beverly).
A construção de personagens é exemplar no script. No primeiro ato, cada uma das crianças é apresentada, algumas com maior espaço do que outras – ressalva que merece ser feita. Vários recebem seus arcos dramáticos pessoais, por exemplo, Mike é duramente cobrado por seu avô por não ter a mesma coragem do pai, Stan (Wyatt Oleff, com pouco tempo de tela) é exigido por seu pai para estudar mais hebraico para estar pronto para ler a Torá em seu Bar Mitzvá, e assim por diante. No caso do líder do grupo, Bill (Jaeden Martell, incrível até mesmo ao simular a gagueira da personagem), a cicatriz deixada pelo episódio com o irmão é de um drama bastante denso. Mas o roteiro também erra: como poderia Eddie, com tanto conhecimento, não saber o que é placebo? Por que Ritchie é tão pouco desenvolvido? Por que há um hiato tão grande em relação a Mike, esquecido em boa parte da narrativa?
Sinistro, visceral, despudorado e aterrorizante: “It – a Coisa” é a síntese de um terror de alto nível, léguas à frente da maioria dos concorrentes. É a prova de que nem todo filme do gênero precisa navegar em lagoas rasas.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.