“THE HANDMAID’S TALE” [3ª Temporada] – Série camaleônica
As mudanças de cores de um camaleão não são apenas um mecanismo de camuflagem, mas também a demonstração de sua condição psicológica. Por conta dessa característica, costuma-se dizer que pessoas são camaleônicas quando constantemente passam por transformações, a depender da situação. Não há definição melhor para a série THE HANDMAID’S TALE, que em sua primeira temporada criou o universo da República de Gilead, na segunda potencializou os sofrimentos das mulheres junto ao público e na terceira mostrou que a palavra da vez é resistência.
O novo ano se inicia imediatamente de onde a produção havia parado: June ajudou na fuga de sua filha Nichole, contando com a colaboração de Serena e do Comandante Lawrence, e de Emily, porém continuou em Gilead para salvar sua outra filha, Hannah. Após a descoberta de que um bebê foi levado às escondidas para o Canadá, June sai da casa onde servia a família Waterford e é enviada para ser aia de Lawrence; assim como Serena se arrepende de ter se separado da “filha” e cobra do marido Fred todas as providências para trazê-la de volta. Enquanto isso, uma rede clandestina de oposição a Gilead se articula reunindo mulheres de diferentes classes, inclusive June.
Na terceira temporada, predomina o tom conspiratório de Marthas e aias através da recorrência de cenas em que personagens sussurram estratégias e alianças, enquadradas por planos aproximados que expressam o segredo daquelas ações e a sensação de comunhão silenciosa em uma ambiente perigoso – a fotografia sombria das locações internas, preenchida por alguns filtros de luz externos, ajuda a criar essa ambientação. A conspiração é vista pelo olhar de June, sempre agindo na surdina e se aproveitando da influência incomum que adquiriu sobre outros indivíduos: seus pensamentos sobre quem poderia ser atraído para a resistência são ouvidos em voice over durante a caminhada para um batismo; a conversa ousada com Fred, em que pede para ele se reconciliar com Serena dando maior liberdade a ela; e a tentativa de convencer Serena a usar sua influência para lutar contra o sistema.
Assim como a produção alterou sua essência ao longo das temporadas, a protagonista também passou por transformações camaleônicas em sua trajetória graças à atuação espantosa de Elisabeth Moss. A atriz conserva, em alguns momentos, a escolha de manifestar as emoções silenciosamente através das expressões faciais de ironia, dissimulação, inocência forçada e fúria contida e da narração em voice over dos pensamentos; em outros, acrescenta mais camadas para sua performance, levando a rompantes de revolta e agressividade pela incapacidade de conter as emoções à flor da pele (como quando agride outra aia); e ainda avança para o desafio aberto ao sistema (sua participação em um plano de fuga de algumas mulheres) e para atitudes violentas em prol da conquista de seus objetivos (as insinuações de radicalismo no voice over, a postura de incitação à violência para outra aia e uma nascente brutalidade em seu temperamento que choca outros personagens). É interessante notar como a expressividade da atriz é destacada pelos sucessivos closes que indicam sua complexa jornada emocional ao fim de cada episódio.
Mudanças contundentes nas trajetórias não são exclusividade de June, já que os personagens secundários também são muito bem explorados. A complexidade dramática dita o relacionamento entre Fred e Serena, alternando-se entre a crise conjugal, as desconfianças mútuas, a reconciliação e o desfecho inesperado. A riqueza de camadas caracteriza Serena, mulher em eterno conflito entre suas crenças, sua posição em Gilead e seu desejo materno. A ambiguidade moral e comportamental reveste a residência dos Lawrence, a partir da vulnerabilidade e instabilidade de Eleanor e das ações contraditórias de Joseph (um homem que ajudou a construir o sistema, mas apoia ocasionalmente a resistência). A superação de traumas e o engajamento na luta contra a opressão de Gilead fazem parte da dinâmica de Emily, Luke e Moira no Canadá (é instigante presenciar cada vez mais uma realidade diferente e livre, próxima a Gilead e em relação conturbada com os vizinhos).
O aspecto camaleônico da narrativa igualmente transparece na organização de uma mise-en-scène diversificada. Apesar de alguns elementos visuais recorrentes, os episódios são estruturados com ideias criativas e variadas: quadros construídos fora da lógica tradicional do plano e contra-plano, enquadrando os personagens segundo os objetivos dramáticos da cena como o obscurecimento do rosto de Fred para desumanizá-lo enquanto conversa com Serena; a imagem em ruínas do monumento a Abraham Lincoln do Lincoln Memorium utilizada para simbolizar a ruína da liberdade em Gilead; o paralelismo visual das sequências de abertura e encerramento do sétimo episódio sobre o enforcamento de condenados à morte; e a ação transcorrida praticamente em uma única locação no nono episódio. Nesse sentido, a trilha sonora demonstra como a letra das canções pode mudar de significado por conta do momento em que são inseridas, o que acontece com “Sunday Bloody Sunday” no quinto episódio, “Every day” no sexto e “Heaven is a place” no nono.
Assim como a segunda temporada desencadeou algumas reações polêmicas do público, a terceira pode passar pelo mesmo processo. Se anteriormente houve controvérsias quanto a acusações de um suposto torture porn e ao desfecho do último episódio, dessa vez é possível que haja desdobramentos semelhantes para o arco percorrido por June. No entanto, as transformações vivenciadas pela protagonista não são repentinas nem mal fundamentadas, pois “The Handmaid’s Tale” e sua personagem principal atravessam uma trajetória dramática coerente relacionada aos impactos causados pela República de Gilead. O caráter camaleônico faz com que a série possa transitar da constituição de um universo, da exibição de atrocidades sob falsas justificativas e da formação de uma resistência que não aceite a misoginia, a violência e o fanatismo religioso.
Um resultado de todos os filmes que já viu.