“ANNABELLE 3: DE VOLTA PARA CASA” – Universo incoerente
A boneca de maquiagem demoníaca é o fruto mais lucrativo dos filmes “Invocação do mal“, pertencendo a um universo em comum que inclui também “A freira” e “A maldição da chorona”. Nenhum deles, entretanto, sequer se aproxima minimamente da produção dirigida por James Wan, responsável por uma guinada no terror comercial. Nem mesmo o recém-lançado ANNABELLE 3: DE VOLTA PARA CASA consegue expandir ou fazer jus à ambientação original, já que falha na construção de seu próprio universo independente.
A maligna boneca aparece dessa vez para atemorizar a família Warren. Quando Ed e Lorraine viajam em um fim de semana, deixam sua filha Judy sob os cuidados da babá Mary Ellen, que leva para a casa a amiga Daniela. As três entram em perigo quando Daniela liberta Annabelle do espaço onde estava confinada, permitindo, assim, a liberação dos outros objetos amaldiçoados na sala de artefatos dos Warren. A partir daí, as personagens precisarão sobreviver a uma noite em que ameaças diferentes tentarão se apoderar de suas almas.
Um dos pontos mais altos na construção ou apresentação do universo narrativo se encontra na abertura: trazer para o centro da trama o casal Warren, citado brevemente ou nem mencionado nos filmes anteriores. A sequência inicial mostra os demologistas levando Annabelle para sua casa com o objetivo de retirá-la de circulação e minimizar seus efeitos, selando-a com uma proteção especial abençoada por orações cristãs. Durante o trajeto, o diretor Gary Dauberman é bem-sucedido na indicação dos perigos relacionados à boneca (a atração de espíritos e demônios na cena do carro em meio a um nevoeiro) e dos detalhes da atividade de Ed e Lorraine (os vários artefatos assombrados na sala de sua residência) – através de uma decupagem contida sem sobressaltos de sustos “inesperados”, é criada uma atmosfera mística e perigosa.
A saída do casal para uma viagem faz com que permaneçam na casa Judy, Marry Ellen e Daniela na véspera do aniversário da criança. A partir desse instante, o universo dessa obra que pretendia ter uma unidade se sabota constantemente e destrói o que tentava estabelecer de tema e conflitos. O medo diante da morte é a questão mobilizada para mostrar como Judy ouve boatos, especulações e provocações e sofre bullying dos colegas de colégio por conta das atividades dos pais (justamente porque desconhecem o que os Warren realmente fazem); e como Daniela se aproxima dos artefatos amaldiçoados por conta da trágica morte do pai (há uma curiosidade para vê-los, mas também um desejo de se comunicar com os mortos. Haveria uma discussão temática se tais pontos não fossem esquecidos durante a maior parte da narrativa, sendo recuperados rapidamente no terceiro ato para dar uma conclusão apressada e superficial a eles.
Somada à fragilidade temática, a incoerência do universo se manifesta na construção das sequências de terror. Aparentemente, o cineasta seguiria a linha do terror de atmosfera, investindo em movimentos fluidos da câmera, no enquadramento discreto e silencioso da ameaça na lateral do quadro e nas justificativas das ações e conflitos dos personagens através dos dramas pessoais (a perda do pai para Daniela e os comentários maldosos na escola para Judy). Porém, o estilo não tarda a ser alterado sensivelmente para um modelo oposto, baseado em movimentos descuidadamente agitados e frenéticos da câmera, em jump scares bobos e preguiçosos e em decisões absurdas dos personagens (procurar um vulto desconhecido que atravessou o corredor, esconder uma chave em local de fácil alcance para qualquer pessoa e deixar sozinha na casa Daniela quando esta já demonstrava vontade de remexer nos arquivos dos Warren).
Do segundo ato em diante, as sequências de terror também evidenciam uma incoerência porque se tornam esquetes vividas separadamente por Judy, Mary Ellen e Daniela. As situações não se comunicam, não constroem sentido para aquelas ameaças (simplesmente aparecem por influência da boneca e parecem adiar o momento de maior violência) nem possuem uma escala crescente de perigo. É o que se observa, por exemplo, na naturalidade da reação da menina após ser atacada por uma mulher vestida de noiva, nos poucos riscos concretos vivenciados pela babá e no desperdício de possibilidades realmente assustadoras para Daniela quando está de frente para uma TV misteriosa.
Outros dois problemas enfraquecem o universo estabelecido para o terror. Há muitas conveniências inverossímeis que fazem a iluminação dos cenários mudar para reforçar o medo – algo que torna a ambientação incompreensível e nada justificável, como se vê na luz da lanterna que acende e apaga antes de um susto ou da salvação da personagem e em uma névoa mal feita fora e dentro da casa. Além disso, o personagem Bob é absolutamente dispensável, fazendo com que seu arco como alívio cômico e interesse romântico de Mary Ellen apenas prolongue excessivamente a narrativa ou diminua a tensão.
Nos minutos derradeiros, “Annabelle: De volta para casa” ainda consegue a proeza de se encerrar como um drama preocupado em finalizar cada subtrama dos personagens (a questão do bullying, do interesse romântico, da culpa pela morte do pai e do planejamento do aniversário). Mais uma incoerência dentro de um filme que não define uma unidade estética para o terror, uma coesão no tratamento do tema e a verossimilhança do universo. Afinal, a aparição de um lobisomem é o ápice da confusão estilística e temática de uma produção que sabota suas eventuais qualidades.
Um resultado de todos os filmes que já viu.