“DARK” [2ª TEMPORADA] – Sic artis opus creatus est
Com sua segunda temporada, DARK se firma como uma das melhores séries da Netflix – se não for a melhor. A produção alemã é tecnicamente primorosa, original, criativa e intelectualmente desafiadora. Um trabalho sem precedentes no audiovisual.
Os oito episódios têm enfoque em 2020 e 2052, sem desconsiderar outras linhas temporais. Em 2020, a polícia de Winden monta uma força-tarefa em razão dos desaparecimentos misteriosos ocorridos no ano anterior. Paralelamente, em 2053, Jonas descobre que a cidade sofreu um apocalipse, enquanto precisa sobreviver na inóspita realidade em que se encontra e, ainda, descobrir como retornar à sua linha temporal.
A dupla Baran bo Odar e Jantje Friese prossegue à frente do seriado, não mantendo o nível da arrebatadora e sensacional primeira temporada apenas no quesito inovação. A música dos créditos iniciais (“Goodbye”, de Apparat) retorna, com uma animação novamente hipnótica, mas não é nada tão diferente do que já foi visto. As maiores novidades ficaram para trás, o que não significa, contudo, que não existem surpresas. São vários os plot twists e diversas as explicações que amarram na trama algumas pontas soltas anteriormente deixadas. Entretanto, surgem novas lacunas e novas dúvidas – ou seja, o complexo emaranhado do roteiro de 2017 ganha envergadura ainda maior em 2019.
Retorna a mistura do script entre ciência e religião, dando mais passos em direção à primeira e elaborando mais metáforas em relação à segunda. No aspecto religioso, há citações a paraíso, inferno e profecia, por exemplo, além de uma inusitada chuva – metonímia para a oitava praga do Egito presente na Bíblia (algo similar ao que Paul Thomas Anderson fez em “Magnólia”). Do outro lado, expressões técnicas reais como “paradoxo de Bootstrap” e “bóson de Higgs” reforçam o conteúdo intelectual da série, dando-lhe amparo científico e estimulando o espectador a pesquisar e raciocinar. Sem exagero, a produção é muito distante do entretenimento escapista dos blockbusters.
No que se refere à narrativa, há um ritmo mais lento e menos confuso quando comparado ao dos primeiros dez episódios: no primeiro caso, porque claramente os oito capítulos intermediários servem como ponte para a vindoura terceira temporada; no segundo, porque as personagens já são bem mais familiares. Porém, a divisão de espaço entre elas é consideravelmente desproporcional – isto é, o destaque recebido por algumas em detrimento de outras é de fácil percepção. Não se trata de um problema, mas de uma opção benéfica, já que torna a trama principal mais hermética – tampouco excluindo a proliferação de diversas subtramas, que dá o tom que a série tem.
Louis Hofmann é ótimo como o jovem Jonas, personagem principal, agora mais calejado e entristecido (mudando a postura ao final). Andreas Pietschmann tem um desafio diverso, pois a versão madura de Jonas se revela vulnerável e desnorteada (narrativamente, porém, falta-lhe um objeto de desejo claro). Um dos maiores destaques é Peter Schneider, tendo em vista que a conduta de Helge agora faz sentido e seu comportamento alucinado permite ao ator mostrar seu talento. Como personagem, Helge tem um arco dramático bem delineado, exigindo uma nova faceta até mesmo de Tom Philipp, versão infantil da personagem.
Outra personagem que assume maior centralidade na trama é Claudia, porque começa a compreender a viagem do tempo. Julika Jenkins é formidável no papel de uma mulher que precisa se dividir entre a condução de uma grande empresa, a assunção de um papel de liderança na disputa da trama central e as dificuldades da vida familiar. Talvez seja Claudia a personagem mais completa de “Dark”, na medida em que suas duas versões (madura e idosa) agem como contraponto ao misterioso Noah. Mark Waschke não dá novo tom ao enigmático Noah, mas a personagem muda seu arco dramático, principalmente quando se descobre que o antagonista é outro.
Supostamente, a produção alemã é maniqueísta, já que menciona a luta entre luz e sombra. Na prática, todavia, não é seguro afirmar isso – na verdade, prevalece a nebulosidade sobre todos, como é o caso de Hannah (Maja Schöne) e Ulrich (Oliver Masucci), cada um protagonizando ao menos um momento de reviravolta – a ambiguidade dos dois os torna muito reais. Christian Pätzold divide sua versão de Egon entre a fragilidade e a curiosidade, tornando-se igualmente humanizado. No geral, portanto, há um aprimoramento na personalidade das personagens.
Os episódios contam, cada um, com sequências de montagem paralela (ou, mais tecnicamente, alternada) que beiram o sublime – a título exemplificativo, no segundo, a direção usa ferramentas visuais que inteligentemente destoam do resto do episódio, entre elas, spit screen e rimas visuais (Charlotte e Peter se abraçam, bem como Hannah e Jonas), tudo ao som de “Thunder”, de RY X. São poucas as séries que conseguem usar tão bem a montagem com função narrativa: os raccords são espetaculares, como ao usar jump cuts em closes consecutivos para demonstrar que é a mesma personagem em faixa etária distinta ou ao sincronizar uma música de suspense com o ruído de um cronômetro para indicar a mudança narrativa para outra linha temporal. Quando a montagem não consegue influenciar na narrativa, é feita uma sequência contemplativa (novamente, com montagem paralela), como aquela ao som de “Melody X” (Bonaparte), no terceiro episódio.
Ben Frost faz uma elogiável escolha de músicas, sempre mantendo coesão com a narrativa e com a montagem. Outro bom uso da trilha musical é com “Suspicious mind”, em uma cena na qual a canção é vagarosamente reduzida de volume, enquanto uma música de tensão aumenta. Na estética, o design de produção não é muito variado, porém a fotografia é esplendorosa, em especial na linha temporal futurista, cuja aridez é quase palpável ao espectador. Note-se que o vestuário de Jonas, que aparece no trailer, não é indicativo de frio, mas representação imagética da necessidade de torná-lo misterioso (aproximando-o da sua versão madura), aludindo também à secura daquela realidade cinzenta e opressora. Além disso, a equipe de maquiagem é bastante exigida com ele e com o novo vilão.
Mesmo sendo um degrau intermediário, conectando o começo e o fim de uma saga, a segunda temporada de “Dark” tem personalidade própria, mantendo o nível de excelência que alcançou em 2017. Ainda há muito para ser solucionado, o que cria enorme expectativa para a continuação – aliás, melhor falar dessa forma, como sequência, já que uma das principais ideias da produção alemã é questionar o conceito de desfecho. Não é nada simples. Mas é assim que é feita uma maravilhosa obra de arte.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.