“CHERNOBYL” – O horror da realidade
Histórias ficcionais conseguem criar universos amedrontadores próprios para chocar e atemorizar o público, colocando-o em uma imersão tamanha que seus maiores medos parecem ganhar a realidade. Por outro lado, histórias reais podem ser tão aterrorizantes quanto a criação pura e simples da cabeça de algum artista porque evocam acontecimentos que, concretamente, deixaram marcas extremamente negativas. O século XX reservou à humanidade diversos episódios trágicos e espantosos, passando por guerras, genocídios e intolerância, chegando ao desastre nuclear ocorrido na Ucrânia e retratado na minissérie CHERNOBYL.
A HBO é a responsável pelos cinco episódios que contam o acidente na usina nuclear de Chernobyl, próximo da cidade de Pripyat, no norte da Ucrânia, enquanto ainda era uma província da antiga URSS, em 1986. Além do fato em si, a produção também aborda as consequências da liberação da radiação nas pessoas que viviam na região e cercanias e as ações das autoridades políticas e científicas para conter a catástrofe. Simultaneamente, é feito um retrato das vésperas do ocaso do socialismo soviético.
O incidente é ocultado nos primeiros episódios, não sendo detalhadamente exibido nem explicado. Ao invés de se concentrar no ocorrido, a narrativa é montada para revelar suas diferentes facetas e olhares, alternando entre alguns núcleos: os cientistas que trabalhavam na usina, cometeram algum erro e tentavam remediar os estragos; as autoridades governamentais que agem para acalmar a população, comandar as operações de reparo e lidar com as implicações políticas (na figura de Boris); cientistas de outras instituições que também enfrentam o problema (representados por Valery e Ulana); os bombeiros chamados para apagar um incêndio aparentemente comum (um deles é destacado, junto com sua esposa); outros cidadãos comuns mostrados como vítimas de uma tragédia de grande magnitude, que provoca sintomas a curto prazo e propaga seus efeitos rapidamente.
Uma parte considerável da minissérie se dedica a apresentar as consequências do acidente nuclear para a saúde das pessoas de formas variadas e sempre impactantes e grandiosas. Os personagens diretamente afetados passam a ter graves ferimentos de pele, perda de cabelo, dores angustiantes, entre outros sintomas; mesmo aqueles expostos indiretamente por alguma razão contraem alguma doença a longo prazo, como o câncer. Até a busca por uma solução envolve desafios e riscos incontornáveis, como fica claro nas estratégias para isolar as áreas contaminadas e o núcleo do reator avariado: a necessidade de matar todos os animais da região, de evacuar os moradores próximos (a sequência que envolve uma senhora idosa é ainda mais chocante por contar com referências intimidadoras ao passado recente da URSS) e de expor trabalhadores a sacrifícios permanentes contra suas próprias vidas. A direção de Johan Renck transmite muito bem a força da ameaça da radiação, tornando o espectador temeroso de um mal devastador e invisível.
Muito desse choque está associado a momentos de tensão construídos ao longo da obra. Há a sequência de abertura que antecipa os problemas existentes em Chernobyl e tem um desfecho inesperado após planos lentos de acontecimentos banais (descartar o lixo, alimentar um gato…); do acidente, filmado a partir dos desdobramentos da ação tanto nos planos gerais de bombeiros tentando apagar o incêndio grandioso, quanto em closes das expressões de desespero dos cientistas. Existem também outros dois momentos de grande inquietação ligados às tentativas de contenção da radiação, através do fechamento manual de uma válvula debaixo d’água e da cobertura do núcleo com detritos atirados do teto da instalação – sentimento estabelecido pela fotografia opressivamente escura e pela incômoda edição de som.
Existe ainda uma segunda dimensão do horror evocado pelos fatos reais da trama. A lentidão, a ineficácia e os interesses condenáveis em torno das reações das autoridades competentes agravaram a tragédia, em função das repercussões midiáticas prejudiciais de um incidente tão grave como esse. Setores dentro da usina, da diretoria e do Partido Comunista falham na comunicação, negam insistentemente a gravidade da situação e desconsideram a possibilidade de algo inédito assim acontecer com o núcleo do reator. Atitudes assim são explicadas pela narrativa de formas diversas, incluindo a negação patológica para não ter de enfrentar caso ainda sem precedentes, a surpresa diante de um problema estrutural e de falhas humanas impensáveis e a incapacidade de admitir os erros cometidos – tudo isso atrasa e burocratiza os planos de ação.
As limitações de instituições encarregadas de lidar com o problema refletem um contexto histórico muito específico. A veracidade com que a atmosfera da Guerra Fria é construída impressiona por conta da capacidade da narrativa em apontar as contradições do Partido Comunista e de suas disputas ideológicas com os EUA: o projeto popular e igualitário é desvalorizado na URSS em favor de indivíduos interessados no poder e em seus privilégios; a paranoia do momento sugere que o acidente possa estar relacionado a um ataque dos inimigos norte-americanos; e, principalmente, os esforços dos líderes políticos de esconder o desastre nuclear para evitar manchas na imagem do socialismo dentro da propaganda de supervalorização dessa doutrina e desqualificação do capitalismo. Conforme o espectador percebe as implicações dos julgamentos, ordens e discursos do governo soviético, são cada vez mais perceptíveis as iniciativas de controle das verdades e dos significados do passado recente – uma manipulação que destila mentiras mesmo que envolva vidas inocentes que deveriam ser protegidas e cuidadas. Nesse sentido, as mortes e a adulteração dos acontecimentos revelam uma terrível realidade em que o terror é bastante concreto.
Um resultado de todos os filmes que já viu.