“O HOMEM QUE MATOU DOM QUIXOTE” – Realismo fantástico
Desde o momento que Terry Gilliam decidiu produzir sua própria leitura para o clássico da literatura Dom Quixote, muitos problemas dificultaram seu projeto. Foram mais de vinte anos enfrentando tempestades que danificaram os sets, quebra do orçamento, perda de direito das filmagens, brigas judiciais, mortes dos atores Jean Rochefort e John Hurt etc.. Nesse sentido, é uma vitória pessoal para o cineasta ver “O HOMEM QUE MATOU DOM QUIXOTE” finalmente chegar às telas, mas acima de tudo é uma satisfação cinematográfica para o público assistir a um entrelaçamento tão belo entre realidade e fantasia.
O filme acompanha Toby (Adam Driver), um cineasta que, durante a conclusão de seus estudos, viajou para a Espanha para fazer sua versão independente de Dom Quixote. Todo o elenco foi escolhido entre os moradores locais, incluindo o sapateiro da região (Jonathan Pryce) para interpretar o personagem principal. Doze anos depois, retorna para o local como um consagrado diretor de comerciais de televisão, e disposto a fazer uma superprodução baseada novamente no livro de Cervantes. Enquanto lida com uma crise criativa, Toby reencontra os atores do projeto anterior e descobre que o sapateiro enlouqueceu e realmente acredita ser o próprio Dom Quixote.
A grande proposta é tornar a narrativa um realismo fantástico, agregando três linhas temporais ou temáticas distintas: o presente em que Toby e sua equipe estão na Espanha para uma superprodução; o passado em que ele produziu seu primeiro filme; e algumas passagens que insinuam a veracidade das aventuras do cavaleiro andante na atualidade, como duelos de espadas com inimigos e perseguições religiosas da Inquisição. A transição entre esses momentos é fluida, destacando-se, por exemplo, os recursos que indicam a passagem do tempo: uma imagem congelada que sai do preto e branco do passado e ganha cores no presente; a mudança do formato do quadro com o 4:3 representando o passado; e raccords de movimento acompanhando diferentes enquadramentos da câmera.
Enquanto o espectador conhece a primeira incursão de Toby pela Espanha, o presente do diretor é afetado pelas dificuldades de finalizar seu novo projeto, pelas pressões de um empresário interessado em fazer um comercial de vodca e pelos encontros com o senhor que havia interpretado Dom Quixote. A convergência entre as linhas temporais e as situações tão diferentes faz com que Terry Gilliam possa trabalhar a metalinguagem do fazer cinematográfico (a preparação de um filme e os percalços diante dos problemas criativos e logísticos que surgem), a intertextualidade com a literatura ao trazer momentos marcantes da história literária original (a abertura do filme com o folhear de um livro, as menções a personagens como Sancho Pança e Dulcineia e a cena do confronto com um moinho de vento acreditando ser um gigante) e o humor absurdo dos acontecimentos fantásticos ao redor de Toby (a fuga de cavaleiros da Inquisição e as estranhas cerimônias no terceiro ato).
Fantasia e realidade são enaltecidas e entrelaçadas ainda mais com o trabalho de criação de uma atmosfera para aquele universo. Os figurinos combinam uma reconstituição da Idade Média com as vestimentas luxuosas da elite, paupérrimas dos camponeses e guerreiras dos cavaleiros e roupas modernas da atualidade, exemplificadas pelos trajes elegantes de Toby compostos por uma camisa branca, colete e cachecol – é interessante perceber como a progressão do lado fantástico desfaz o aspecto impecável de suas roupas. Já o design de produção combina os vastos cenários desérticos com as locações de origem históricas de ruínas, monumentos e palácios – as lentes anamórficas e o contra-plongée reforçam a grandiosidade dos espaços naturais ou dos ambientes medievais.
Porém, Gilliam não se limita a transpor para as telas a história de Dom Quixote sem imprimir sua própria marca. O cineasta usa a fantasia da capa e espada para comentar como os aspectos lúdicos são apropriados com fins muito diferentes pelas distintas camadas sociais. O sapateiro estava perdido na vida até encontrar uma razão de ser interpretando lendário personagem e fundindo sua existência ao cavaleiro. Já os empresários que pretendem fazer um comercial de vodca ou que fazem parte da produção do filme de Toby encaram o fantasioso como um espetáculo vazio, responsável apenas por preencher suas vidas tediosas – eles chegam a manipular a ingenuidade alheia para dar uso a todo o dinheiro que possuem.
O impacto do fantástico sobre o real também está presente nos arcos construídos pelos dois principais atores do elenco. Jonathan Pryce é hábil para evocar a transformação de um homem desgostoso com a vida para um sujeito romântico e ingênuo decidido a salvar os mais fracos como Dom Quixote – o espectador se compadece com a certeza do homem de que o universo que habita é real e necessário para si. Já Adam Driver possui uma trajetória de mudança diretamente ligada à penetração do fantasioso em sua vida cotidiana, passando do cinismo e do egocentrismo da fama para uma postura empática de preocupação com o outro e respeito pela imaginação.
“O homem que matou Dom Quixote” é, em suma, o triunfo do cinema contra adversidades das mais variadas. Uma demonstração vívida de como os amantes da sétima arte perderiam muito sem a versão peculiar saída da mente criativa de Terry Gilliam, algo que contempla aventura, fantasia, comédia, comentários sociais, metalinguagem, ternura na abordagem dos personagens, apuro visual… Todas características que fazem o projeto estar a altura do célebre Dom Quixote de la Mancha.
Um resultado de todos os filmes que já viu.