“STAR TREK: DISCOVERY” [2ª TEMPORADA] – Nos quadrantes da ciência e da fé
O universo narrativo de STAR TREK: DISCOVERY pertence a uma realidade alternativa não associada diretamente aos fatos de filmes e séries já produzidos. Essa escolha permite que a primeira temporada da série original Netflix seja sombria e bélica, caracterizada pela guerra entre a Frota Estelar e a raça dos klingons e por um caráter “procedural” significativo (episódios da semana com algum conflito menor nem sempre conectado à trama principal). Já a segunda temporada pode conter um tom mais otimista, esperançoso e interessado nas questões concernentes à ciência e à fé.
O segundo ano da obra mostra a tripulação da Discovery atendendo a um pedido de socorro da USS Discovery e se unindo ao capitão Pike. A união acontece para investigar sete misteriosos sinais na galáxia e as estranhas aparições de um ser chamado Anjo Vermelho. Enquanto o trabalho se desenvolve para elucidar tais enigmas, a Comandante Michael Burnham confronta seu passado após a chegada de seu irmão Spock.
A narrativa traz imediatamente diferenças em relação ao material antecessor: viagens pelo espaço com funções exploratórias ou de resgate sem maniqueísmos ou vilões declarados; humor como alívio cômico pontual e orgânico; e um frescor maior visto nos uniformes coloridos da Discovery.
Tematicamente, a conciliação entre ciência e fé move a série, tratando-as como duas perspectivas válidas e amplas para entender e agir sobre o mundo. Existem os procedimentos da ficção científica para fazer a nave desbravar o universo através da tecnologia (saltos temporais, substâncias naturais poderosas, técnicas criadas por outros povos da Federação, viagens em altíssima velocidade, manutenção da Discovery…) em paralelo com a descoberta do Anjo Vermelho e da incompreensão de suas características (o próprio nome do ser e suas habilidades aparentemente místicas se referiam a uma crença não científica). Com o desenvolvimento da trama, os dilemas quanto à possibilidade de superar os conflitos apresentados e de conseguir traçar um futuro diferente daquele que parece já estar escrito reforçam a presença de um tipo de fé nos pensamentos racionais.
Os arcos dos personagens também se encontram com o tema central para expressar os conflitos e evoluções pelos quais passam. A relação entre os irmãos Michael e Spock, além de possuir ressentimentos e feridas do passado, expõe as controvérsias entre lógica e emoção; as dores de Stamets após a perda do namorado exigem a administração de seus sentimentos para a continuidade de seu trabalho; os projetos de vida de Tilly envolvem a conquista de autoconfiança e segurança junto com seu amadurecimento nas missões científicas da equipe; e as características da espécie de Saru o colocam em um desafio entre aceitar as tradições milenares de seu povo ou trilhar um caminho inesperado e desconhecido. As jornadas de Michael e Spock recebem muito mais atenção pelo roteiro, sendo a essência da temporada, enquanto os demais personagens possuem alguns episódios específicos para serem mais trabalhados.
Marcas registradas de Star Trek igualmente se fazem presentes para continuar estabelecendo ser universo e, assim, complementar sua temática. A diversidade e a representatividade são observadas pelas diferentes espécies, gêneros e culturas dos personagens, exemplificados pela tripulação de homens, mulheres, negros, orientais, kelpianos e outras raças da Discoverye pelos demais seres encontrados em pontos diversos da galáxia- os comportamentos e as feições físicas (acentuadas pelos efeitos visuais e maquiagem criativos). Simultaneamente, o pacifismo e a cooperação harmônica são evidenciados pelo dever da Frota Estelar de garantir o equilíbrio do espaço e pelo capitão Pike, um líder preocupado com toda a sua equipe e disposto a sacrifícios sinceros em nome da coletividade (os diversos episódios em que Pike valoriza a tripulação, homenageia seus comandados e faz questão de conhecê-los demonstram a sua personalidade).
A direção dos capítulos dessa temporada possui uma coesão rítmica tão acertada que permite algumas escolhas visuais mais arrojadas em comparação com a primeira temporada. O antigo espírito “procedural” diminui graças a uma trama dividida em pequenos desafios em direção ao conflito maior, algo que faz de cada episódio importante para o desenvolvimento da narrativa e dos personagens como se fossem partes de um quebra-cabeça a ser montado. Além disso, enquadramentos diferentes são feitos para imprimir maior dinamismo, como planos inclinados em momentos de vulnerabilidade, planos subjetivos nas sequências de ação e movimentos circulares da câmera como emulação do deslocamento do espaço.
O apuro visual dos cenários e dos efeitos torna a experiência agradável aos olhos e compatível com a história contada. A Discoveryé concebida como um espaço de tecnologia avançada e de cores fortes próprias ao otimismo da equipe e os planetas visitados têm características particulares, como o planeta em ruínas sob escombros e a reprodução análoga da Terra como uma comunidade pequena e rural. O design é muito favorecido pelos ricos e excelentes efeitos visuais, que jamais abusam da artificialidade e realmente convencem que a representação da galáxia poderia ser daquela forma – os flares nas lentes criam fachos de luz que remetem ao otimismo da produção e ao encantamento diante daqueles cenários desconhecidos.
“Star Trek: Discovery” apresenta um salto de qualidade inegável na segunda temporada. Uma evolução que faz seus quatorze novos episódios mais organizados, dinâmicos e compatíveis com o tom esperançoso da franquia. Corrigindo erros anteriores no ritmo narrativo, dando um espaço um pouco maior para os personagens secundários e criando uma trama que potencialize seus dotes estéticos e sua tradição de diversidade e representatividade, a série triunfa como uma diversão com algo a dizer.
Um resultado de todos os filmes que já viu.