“O MAU EXEMPLO DE CAMERON POST” – Um bom exemplo de filme necessário [42 MICSP]
Em tempos nos quais o discurso de intolerância ganha mais adeptos no mundo todo, O MAU EXEMPLO DE CAMERON POST pode ter uma importante função pedagógica. Se não tem a contundência de “Save me” (2007), a intensidade emotiva de “Orações para Bobby” (2009), o viés subversivo de “Stray” (curta, 2015), a aura romântica de “Fair haven” (2016) ou a precisão técnica de “Boy erased – uma vedade anulada” (filme de 2018 cuja crítica pode ser lida clicando aqui) – para citar apenas os mais recentes sobre o mesmo assunto -, talvez consiga atingir algo que os similares não alcançaram: visibilidade.
A Cameron Post do título é uma adolescente forçada pela tia a se submeter a uma internação no “Promessas de Deus”, uma espécie de acampamento religioso onde é feito um tratamento para livrar jovens da atração pelo mesmo sexo. Entre dúvidas, questionamentos e lamentos, ela vai construindo suas próprias conclusões.
O que há de mais relevante no filme, do ponto de vista da sua mensagem, é o retrato do modus operandi da “cura gay”, um charlatanismo proposto em alguns centros religiosos. Partindo de um discurso opressor (“o que vocês chamam de diversão é o inimigo que está apertando seu pescoço sem que percebam”) e usando de técnicas escancaradamente maléficas (cerceamento de direitos básicos como comunicação com o exterior), é evidente que o “tratamento” tem consequências nefastas.
Como lobo em pele de cordeiro, no local é pregada a intolerância e a violência (em sentido amplo) contra pessoas “portadoras” do que convencionam chamar de “AMS” (atração pelo mesmo sexo), algo visto como um “sintoma de um problema muito maior”. A homossexualidade é comparada com o canibalismo e com o vício em droga, enxergada como nada mais que uma compulsão, merecedora, assim, de uma justificativa racional para que seja superada – apreço por esportes exageradamente masculinos (no caso de uma garota), contato intenso demais com a mãe e com atividades femininas (no caso de um garoto) etc. Utilizando um iceberg como coerente símbolo, os jovens são sujeitos a humilhação pública e coagidos a sentir vergonha de si mesmos.
Nesse contexto, o roteiro de Desiree Akhavan e Cecilia Frugiuele acerta ao expor as ações e reações dos colegas de Cameron, mas erra ao diminuir a participação desta. Com sensatez, os coadjuvantes são arquétipos críveis. Mark é o exemplo a ser seguido (impressiona como seu intérprete, Owen Campbell, consegue o tour de force exigido em uma cena, destoando do trabalho até então linear); Erin (Emily Skeggs, razoável), a colega vulnerável e paradoxalmente perigosa; e Adam (Forrest Goodluck, talvez o melhor do elenco jovem), a vítima favorita. Destacam-se positivamente Jane Fonda (Sasha Lane, que só não é melhor por falta de espaço), cujo sarcasmo atenua o amargor do plot, e negativamente Dane (Christopher Dylan White, impossível de ser avaliado com tão pouco tempo de tela), cuja personalidade furiosa contrasta com os demais – uma pena que o papel tenha sido diminuto, a contraposição teria sido salutar.
A despeito de pontas soltas (o que houve com Coley?), o rol de personagens secundárias é deveras cativante. Até mesmo os vilões são verossímeis: de um lado, uma déspota inescrupulosa e manipuladora de perfil visivelmente passivo-agressivo (a atuação de Jennifer Ehle no papel tem um ar assustador pelo pacifismo aparente); de outro (John Gallagher Jr., discreto), um oprimido que se torna opressor mesmo percebendo estar desnorteado. Como protagonista, entretanto, Chloë Grace Moretz não chega a brilhar apesar do empenho: a atriz é convincente, contudo o perfil geralmente indefeso de Cameron a torna pálida demais para um filme que precisava de mais energia.
É esse, inclusive, a principal barreira para que o longa se torne memorável. À direção de Desiree Akhavan falta agressividade ou rebeldia para que o filme deixe o público mais comovido – não que ele não seja comovente, mas poderia ser muito mais, considerando o tema. Existem acertos em outros setores (o cirúrgico figurino de Stacey Berman, a fotografia fria e eventualmente árida de Ashley Connor, dentre outros), todavia Akhavan vai bem apenas em cenas periféricas – como no falso flashback que certamente engana o espectador e nas conversas de Cameron por telefone (em uma delas, o ótimo plano holandês em que ela fica escondida expõe sua fragilidade e seu sentimento de repressão e incômodo). No que é nuclear, a brandura não foi uma boa escolha para os fins almejados – o clímax dramático, por exemplo, é simbolicamente frustrante em razão do impacto visual mitigado pela verborragia.
A produção poderia até mesmo ter mais equívocos cinematográficos, que, contudo, não conseguiriam elidir sua transcendência. Se existe um filme necessário desde a concepção (independentemente da execução), “O mau exemplo de Cameron Post” é um bom exemplo.
*Filme assistido durante a cobertura da 42ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.