“BORDER” – Questionar construções socioculturais
Através de uma alegoria inteligente e criativa, BORDER é um conto de realismo fantástico que questiona as construções socioculturais. O longa permite paralelos filosóficos com Sócrates (conhece-te a ti mesmo) e Rousseau (o homem nasce bom e a sociedade o corrompe), dentre outros, além de elucubrações sobre o cinema de gênero pós-moderno (no que se refere à avalanche de filmes de super-heróis) e sobre a maneira como a sociedade encara a política hodierna (com enfoque na polarização).
A grande protagonista do filme sueco-dinamarquês é Tina, uma policial que trabalha em uma balsa fiscalizando bagagens de passageiros suspeitos. Sua “arma secreta” na função é a habilidade de farejar pessoas e objetos suspeitos, até que ela conhece Vore, um sujeito que chama a atenção por ser esteticamente semelhante a ela, com deformidades faciais. Interessada por ele, Tina se encanta cada vez mais, chegando a ignorar seus peculiares instintos que sempre a nortearam.
Do ponto de vista dos “humanos comuns”, o anarquismo de Vore é resultado da violência que ele sofreu com o passar dos anos. Ele não era desse jeito, mas assim se tornou graças ao que as pessoas fizeram com ele. Há uma ótica que leva à mesma conclusão sobre Tina: a sociedade fez com que ela se tornasse o que nunca foi. A rigor, esse é o núcleo do brilhante roteiro de Ali Abbasi e Isabella Eklöf, já que a narrativa é composta de duas tramas, ambas centradas em Tina.
A primeira trama é a jornada de autodescoberta da protagonista. Durante toda a sua vida, ela achava que era apenas uma mulher feia (e provavelmente fadada à tristeza). Não por outra razão, enxerga no marido Roland não um companheiro de vida, mas uma companhia física para convívio, evitando a solidão. É Vore que permite a Tina descobrir – e conhecer – a si mesma, o que a leva ao êxtase.
Por sua vez, a segunda trama, acessória apenas na aparência, é a que permite a Tina constatar a maldade humana. Ela é capaz de perceber que nem todos são maus (citando o pai como exemplo), tendo como certos, porém, seus valores quando colidem com outras pessoas. Sem moralismo piegas, ela censura as pessoas que causam males a outrem. As crianças não têm maldade, são os adultos que, no seio social, as corrompem.
Tina tem um senso ético muito claro para si, tornando-se mais que a heroína do longa, mas uma super-heroína – no momento de auge dos filmes desse gênero. Em seu trabalho, ela é pacífica e tranquila (como no tom de voz e mesmo na postura), além de extremamente educada com os passageiros. Isso não a impede, contudo, de usar seus super-poderes no serviço, farejando os sentimentos ruins das pessoas que estão cometendo algum ilícito. Basta mexer um pouco o nariz e levantar levemente o lábio superior que ela consegue sentir a maldade alheia, quase como uma previsão do futuro.
Apenas uma super-heroína seria capaz de ultrapassar a barreira da polarização. De nada adianta o discurso “nós versus eles” de Vore se ele é utilizado para legitimar o que Tina reprova. Ironicamente, é o próprio Vore que a ensina que o que ela sabe não passa de construções socioculturais (larvas são nojentas porque “todo mundo” disse, mas “todo mundo” pode estar errado). No clímax, a protagonista aniquila essa polarização e adota a que estava na sua essência, entre pessoas que fazem o bem e pessoas que causam o mal alheio. Ela não mais se importa com uma identidade biológica ao perceber que, no fundo, seu fundamento é socioculturalmente construído. Tina é o que é e faz o que acha certo simplesmente porque pode – aqui, torna-se bastante fértil o diálogo com temas complexos como identidade de gênero e, de certo modo, feminismo.
A edição de som da película é feita com esmero (vento na área da balsa, rosnados etc.), porém uma trilha musical com mais personalidade poderia agregar ao longa. A fotografia de Nadim Carlsen privilegia cores opacas e frias, especialmente verde (na porta e nos quadros da casa de Tina, no azulejo da sua cozinha etc.) e amarela (no quarto de Vore). No primeiro caso, a ideia é ressaltar a relação pura, quase romântica, nutrida pela protagonista em relação à natureza, onde ela visivelmente se sente mais confortável; no segundo, o raciocínio é apontar que a autoconfiança de Vore encanta Tina.
A despeito da semelhança estética entre Tina e Vore, eles não poderiam ser mais diferentes na personalidade. O trabalho da equipe de maquiagem é impressionante (quiçá um dos melhores dos últimos anos) e talvez chocante, mas de inquestionável excelência técnica – cabelo solto e desarrumado, dentes tortos e amarelados, pele inchada, nariz largo e boca sempre entreaberta (neste caso, a dedicada interpretação de Eva Melander coloca a produção em outro patamar). Na direção, Ali Abbasi não quer chocar com nudez e sexo (tanto que a violência física aparece apenas de maneira indireta, em imagens vistas pelo celular por poucas personagens, não pelo espectador), causando apenas um desconforto no público em razão das idiossincrasias de Tina (especialmente o visual e o comportamento sexual).
“Border” é uma obra intranscendente, com várias virtudes cinematográficas e metaforicamente riquíssima. Enxergar essas metáforas pode ser um esforço interpretativo maior que em outras produções, mas é isso que faz com que o filme seja bom. O espectador escolhe se vislumbra somente a camada superficial ou se penetra na profundidade, se se identifica com Tina ou com Vore.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.