“ESTRADA SEM LEI” – O tempo é a estrada a percorrer
Na década de 1930, os jovens Bonnie e Clyde formaram um casal fora da lei que se tornou lendário devido à sua onda de crimes cometidos nos EUA, envolvendo assaltos e assassinatos. Em 1967, Hollywood produziu “Bonnie e Clyde: uma rajada de balas“, contado a partir da perspectiva dos dois jovens e protagonizado por Warren Beatty e Faye Dunaway. Já em 2019, a Netflix produz uma nova versão da história, dessa vez sob o ponto de vista dos policiais responsáveis pelas mortes do casal criminoso, chamado ESTRADA SEM LEI.
O novo olhar para a mesma história se concentra nos policiais aposentados Frank Hamer e Maney Gault. Já estando na inativa quando Bonnie e Clyde começam a praticar seus crimes, eles são recrutados como investigadores especiais para o caso quando o FBI se mostra incapaz de efetuar as prisões.
O filme segue a estrutura do road movie, através de viagens por cidades pequenas e estradas extensas da área rural dos EUA, porém não se torna propriamente uma jornada de amadurecimento e autodescoberta como costuma ser nesse subgênero, mas sim uma discussão densa e intimista sobre os efeitos da passagem do tempo.
Seu tema pode ser representado pelo figurino e pelo design de produção, decisivos para a reconstituição de época. Os ternos, chapéus e outras vestimentas da polícia e das autoridades políticas possuem uma seriedade evocada pelas cores preta, marrom e cinza e constroem a ambientação da década de 1930 (contexto conturbado na história norte-americana por conta do contrabando, da máfia e da crise econômica). Ao mesmo tempo, conversíveis modernos e roupas leves e coloridas usados pela população comum contrastam com a sisudez das autoridades e mostram transformações possibilitadas pelo avanço do tempo pela chegada de novas gerações.
O roteiro também desenvolve a questão do tempo a partir da situação de Frank e Maney na caça aos criminosos. Eles são constantemente retratados como figuras congeladas no passado e ultrapassadas pela modernidade do futuro iminente: a governadora Miriam Ferguson hesita em nomear dois antigos Texas Ranger para o caso por considerá-los caubóis decadentes; policiais de outras agências afirmam que os métodos deles são antiquados em comparação com as novas técnicas da força policial; perseguições a pé não são mais possíveis devido à idade e ao preparo físico deficiente; e recordações de um passado famoso sempre são mencionadas por outros personagens que citam casos emblemáticos de seus currículos.
A narrativa vai além em sua discussão temática e demonstra como a passagem do tempo também impacta na forma como os policiais enxergam os crimes do casal. Eles não entendem como as novas gerações podem idolatrar os dois criminosos, inclusive Frank Hamer afirma que precisa combater a idolatria que Bonnie e Clyde despertam – os policiais também reagem com incredulidade quando a imprensa cobre o caso de maneira espetacularizada, banalizando as mortes ocorridas (por exemplo, na cena em que se recusam a dar entrevistas a um jornalista). Além disso, o arco de Frank é um contraponto ao arco de Clyde, já que ambos passaram por situações dolorosas, mas escolheram direções diferentes em suas vidas e vivenciaram suas histórias de formas radicalmente diferentes.
Enquanto as trajetórias dos dois personagens principais se desenrola, a questão central do filme se reafirma. Frank Hamer é um sujeito grosseiro e rude, apresentado como alguém capaz de domesticar um javali, de reagir autoritariamente a quaisquer obstáculos enquanto conduz sua investigação (quase tortura um informante), de conter absolutamente suas emoções (nem sequer consola um antigo amigo de Bonnie diante da brutalidade dos assassinatos cometidos) e de enfrentar as dificuldades impostas por sua própria idade (as limitações físicas e os problemas em voltar a usar uma arma) para se sentir novamente um policial. Maney Gault é um homem também marcado pelo envelhecimento, que precisa ir regularmente ao banheiro e tem um andar semelhante ao de um idoso, contudo é mais sensível que o amigo e se preocupa com as demais pessoas envolvidas no caso; e ele sofre tormentos do passado, associados a uma vontade de fazer parte da investigação mesmo sem entender o real motivo disso. Em ambos os personagens, as atuações de Kevin Costner e Woody Harrelson transmitem o peso do tempo e das transformações do mundo em seus próprios corpos.
Trabalhar a passagem do tempo faz com que o diretor John Lee Hancock se preocupe cuidadosamente com o ritmo da narrativa. A composição dos planos, a filmagem das cenas e o encadeamento das sequências seguem uma morosidade nada entediante e muito compatível com a experimentação do tempo pelos dois policiais: momentos de introspecção em que os personagens apenas refletem sobre suas vidas, planos gerais das estradas e movimentos comedidos da câmera nas sequências de ação são evocativos do descompasso entre presente e passado. A trilha sonora de notas melancólicas também cria a sensação de desolação e desânimo daquele ambiente.
“Estrada sem lei” demonstra como um filme pode afirmar o sentido de sua existência, mesmo contando uma história que não é exatamente original, nem inédita. Abordar um recorte histórico já trabalhado por outras produções pode ser possível, desde que exista uma perspectiva própria a ser desenvolvida. É esse o caso da discussão sobre o tempo pensada pelo roteiro, pelas atuações e pela direção em um cenário tão conhecido da história norte-americana.
Um resultado de todos os filmes que já viu.