“PODERIA ME PERDOAR?” – Torna-te quem tu és [42 MICSP]
Friedrich Nietzsche certa vez parafraseou o poeta grego Píndaro, autor da frase “torna-te quem tu és”. A ideia pode parecer simples ou óbvia à primeira vista, porém há pessoas que encontram dificuldade em definir a própria identidade. Em outras palavras, não conseguem ser. Uma delas foi Lee Israel, protagonista de PODERIA ME PERDOAR?.
O drama cômico tem na protagonista uma escritora solitária e sem dinheiro que passa a elaborar cartas como se tivessem sido escritas por pessoas famosas, já falecidas, para vendê-las por boas quantias. A empolgação com o negócio criminoso lucrativo, porém, faz com que ela vire alvo fácil das autoridades, o que demanda de Lee outras alternativas.
Dirigido por Marielle Heller, o longa é tecnicamente ordinário: a trilha musical de Nate Heller é melancólica, mas discreta, aproveitando grandes nomes do jazz (como Dinah Washington e Peggy Lee); o design de produção de Stephen H. Carter traduz adequadamente a estética da época, anos 1990 (máquinas de escrever, primeiros computadores etc.); os figurinos de Arjun Bhasin, que coloca as personagens com muitos casacos, dialogam com a fotografia gelada de Brandon Trost. Em síntese, trata-se de um trabalho correto, mas muito distante do memorável – ao menos desse ponto de vista.
Com um ótimo desfecho, o roteiro, ao contrário dos atributos mencionados, tem algum requinte. Nicole Holofcener e Jeff Whitty baseiam o script em dois pilares, a partir dos quais vão moldando a narrativa. O primeiro deles envolve a definição de identidade: Lee não consegue ser quem é, pois na verdade não consegue ser. Essa ideia é fundamental na trama, pois grande parcela do seu fracasso deriva justamente na sua (falta de) identidade pessoal. A solução que encontra para os próprios problemas é assumir identidades alheias, o que faz não apenas para melhorar a própria situação financeira, mas também a título de puro divertimento (como nos “trotes” por telefone). Essa atitude se torna quase uma compulsão, da qual ela, inclusive, demonstra um certo orgulho – chega a afirmar que é “uma Dorothy Parker melhor que a (verdadeira) Dorothy Parker”.
O segundo pilar que move a trama é a misantropia, característica tanto de Lee quanto de seu melhor (e único) amigo, Jack Hock. Ela mesma se descreve como “uma mulher de cinquenta e um anos que prefere gatos a pessoas”, o que justifica suas atitudes, de certa forma, hostil: é grosseira com colegas de trabalho, desleixada com a própria casa (o que fazer com moscas mortas em cima do travesseiro? Tirá-las de lá e virar o travesseiro, é claro!) e com dificuldade de ser gentil (quando se diverte com Jack, diz que “não foi desagradável”). E Jack não é muito diferente disso, salvo uma maior sociabilidade com algumas pessoas específicas. A maior diferença entre eles é justamente essa, pois Lee não sabe reagir quando alguém flerta com ela (o que parece é um medo da aproximação), muito menos como agir em tal caso, enquanto Jack é rápido até em demasia no flerte. Outra diferença substancial reside no humor: Lee é bastante amarga (como assim para se relacionar afetivamente por alguém é preciso ouvir seus problemas e sair com os amigos dessa pessoa?); Jack é ácido a partir do sarcasmo (o crime mais grave que a amiga comete certamente é contra a moda).
Para essas engrenagens darem certo, Melissa McCarthy e Richard E. Grant precisavam desempenhar bem os papéis de, respectivamente, Lee e Jack. Eles estão soberbos: escondida em “fundo de garrafa” quadrado, McCarthy encara um desafio na carreira, na medida em que a escritora é introspectiva, socialmente arredia e engenhosa, características nem sempre comum nas comédias em que a atriz participa; esbanjando charme britânico (o que a amiga exalta, inclusive), Grant transmite em Jack autoconfiança, deboche e sarcasmo sem recair no caricatural e – ainda mais difícil – o torna simpático e divertido.
Lee Israel precisou ser outras pessoas para enfim tornar-se quem foi. A despeito dos métodos censuráveis (e criminosos, evidentemente) utilizados, ela descobriu a importância de se ter uma identidade – mesmo que camaleônica. “Poderia me perdoar?” pode não virar um clássico da sétima arte, mas recorda uma lição oportuna: a importância de ser quem se é.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.
*Filme assistido durante a cobertura da 42ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.