“O ASSASSINATO DE GIANNI VERSACE” – Um nome a ser lembrado
“American crime story” é uma série de antologias, em que cada temporada aborda um acontecimento controverso da história dos EUA a partir de uma narrativa que toma liberdades ficcionais para efeitos dramáticos. No primeiro ano da produção, com “O povo vs. O.J. Simpson“, o interesse foi o assassinato da esposa e do amante cometidos por O.J. Simpson. Já nesse segundo, O ASSASSINATO DE GIANNI VERSACE, a bola da vez passa a ser a morte do famoso estilista provocada pelo serial killer Andrew Cunanan.
Baseada no livro “Vulgar Favors: Andrew Cunanan, Gianni Versace, and the largest failed manhunt in U.S. history” de Maureen Orth, a segunda temporada acompanha a trajetória pessoal e criminosa de Andrew Cunanan enquanto assassina cinco pessoas, dentre elas Gianni Versace; paralelamente, o designer atravessa um arco de fama e conflitos íntimos antes da morte. A série se desenrola de forma não linear, alternando entre o ano de assassinato de Versace e os momentos anteriores ao crime, e coloca o foco narrativo no assassino e não na última vítima – dessa forma, a personalidade conflituosa que transforma Andrew em um serial killer é destrinchada em cada detalhe expressivo.
Os nove episódios da temporada não são construídos apenas para fornecer indícios que possam explicar as mortes. Ultrapassando essa primeira camada, existem dois temas centrais que perpassam a produção: o desejo patológico de ser especial e a homofobia. O primeiro ponto é aquilo que move Andrew a mentir, inventar histórias sobre si, buscar um estilo de vida rico e confortável e se cercar de pessoas bem sucedidas; ainda assim, sua vontade de ter seu nome lembrado repudia qualquer esforço ou trabalho “ordinário” que o iguale a indivíduos comuns. No segundo ponto, o preconceito à homossexualidade atinge diversos personagens por dimensões diferentes (Andrew, Versace e as demais vítimas): o temor de se assumir perante à família, a incompetência da polícia em lidar com a diversidade sexual e a incapacidade das Forças Armadas e da Igreja em aceitar homossexuais.
Boa parte dos temas é potencializada pela atuação de Darren Criss, que interpreta Andrew. O ator compõe um personagem multifacetado e contraditório: é inteligente, bonito, sedutor, dono de trejeitos e gostos delicados e refinados, mas também portador de uma feroz violência dentro de si quando suas elevadas expectativas são frustradas. O percurso de degradação física e emocional do assassino é bem retratado pelas diferentes camadas entregues pelo ator, que despertam empatia, repulsa, consternação e revolta no público. Os figurinos de ternos elegantes e o design dos apartamentos onde vive (desprovido de mobílias ou papéis de parede e apenas tendo um armário de roupas caras) reforçam a vida de aparências do personagem, que valoriza excessivamente as posses materiais como sinal de sucesso.
Ao longo da temporada, a narrativa se estrutura de forma específica para desenvolver seus temas. Até o quinto episódio, a dinâmica entre Andrew e suas vítimas recebe destaque, mostrando o período em que trabalhou como garoto de programa e também tentou extrair de seus conhecidos algum benefício material; durante esse recorte, a obsessão do protagonista por ser amado e idolatrado como alguém especial o impediu de construir vínculos afetivos verdadeiros (a frustração com um relacionamento platônico é um grande exemplo). Partindo dos problemáticos relacionamentos anteriores, a série traça paralelos entre Andrew e Gianni Versace para mostrar os caminhos antagônicos tomados por eles, exemplificados pela influência de suas famílias e pelos significados atribuídos ao trabalho (as oposições temáticas entre os personagens ressaltam a visão deturpada do protagonista em relação ao estilista).
A riqueza potencial dessas comparações, contudo, é diminuída pelas poucas inserções do núcleo de Gianni Versace em alguns episódios. A cronologia não linear e a presença pontual do artista, de seu namorado Antonio e de sua irmã Donatella tornam seus arcos e conflitos meramente episódicos e sem tanto impacto. Em termos de atuação, o resultado é, em geral, eficiente: Edgar Ramírez constrói Versace como um homem refinado, inteligente, consciente de sua fama e também atormentado por conflitos pessoais ou de trabalho; Ricky Martin compõe Antonio como um parceiro leal e amoroso, enquanto sofre com o preconceito social tentando não expressar seu sentimento; e Penélope Cruz constrói Donatella como a irmã afetuosa, que não se furta de discutir com o irmão por divergências de trabalho, ainda que a caracterização do penteado e do sotaque pronunciados prejudiquem sua interpretação.
Durante os nove episódios, a alternância de diretores faz com que o estilo visual seja definido lentamente. O primeiro apresenta um tom melodramático exacerbado com os abruptos closes, a trilha sonora intrusiva de violinos, cantos de ópera e saxofone, a fotografia de cores saturadas e os recorrentes plongée e contreplongée no universo de Versace. Já os demais episódios se tornam mais sóbrios ao abandonar uma trilha muito chamativa, alternar entre uma fotografia ensolarada e cinzenta dependendo da cidade norte-americana mostrada e utilizar movimentos verticais de câmera que revelem sutilmente aspectos importantes da trama ou da relação entre os personagens.
“O assassinato de Gianni Versace” se assume como um complexo estudo de personagem capaz de penetrar na intimidade de um serial killer, deixando o lado investigativo para segundo plano. Em dado momento, um personagem diz que Andrew Cunanan gostaria de ter um nome a ser lembrado, algo que, graças à série, se torna possível por outras razões: lembrar-se dessa história significa saber como é importante discutir sobre a solidão e a necessidade de marcar sua existência em uma sociedade homofóbica e intolerante.
Um resultado de todos os filmes que já viu.