“AMIGOS PARA SEMPRE” – Recuse imitações
Quando Dell furta o livro “As aventuras de Hucleberry Finn”, a referência sugere um protagonista que foge de responsabilidades e compromissos. Quanto ao seu sidekick (e é dessa maneira que Philip é tratado), há pouco aprofundamento. Ou seja, “As aventuras de Dell” talvez fosse um nome melhor para AMIGOS PARA SEMPRE, que não é exatamente sobre amizade, embora seja esse o resultado.
Tratando-se de um remake hollywoodiano do francês “Intocáveis” (clique aqui para ler a nossa crítica), o plot é basicamente o mesmo: um homem pobre cumprindo liberdade condicional começa a trabalhar como cuidador de um tetraplégico rico, relação profissional que evolui para uma bela amizade.
A primeira questão que surge é: até que ponto a refilmagem copiou o original? A estrutura geral é a mesma, com piadas novas (em especial a da sonda), uma considerável mudança no interesse afetivo de Phillip (com um desfecho um pouco ambíguo) e uma trilha musical um pouco diferente.
A versão de Phillip de Bryan Cranston é comedida, não conseguindo destaque porque o ponto de foco da trama é Dell. Em regra, Cranston adota um estilo blasé para o papel, exceto em um monólogo dramático (na festa) e quando está sob efeito de maconha. A motivação para contratar Dell não é das mais nobres (diversamente da versão francesa), porém um diálogo entre os dois, no qual constatam a própria invisibilidade (um pela falta de dinheiro e o outro pela tetraplegia), é bastante claro para demonstrar o que os une. Não há problematização quanto à tetraplegia, de modo que existem filmes muito melhores sobre o tema, como “Mar adentro”.
Em relação a Dell, a interpretação de Kevin Hart é muito boa, inclusive no drama – o que surpreende, considerando que sua especialidade é a comédia (e, nesse quesito, ele mostra segurança e conforto, como ao extrair bastante humor na cena do catéter e no banho). No humor, enquanto Omar Sy, na versão francesa, usa em seu favor a estatura alta, Hart usa em seu favor a estatura baixa, sendo engraçada a mera discrepância entre ele e Yvonne. O ator é eficaz também para manifestar a mudança de mentalidade da personagem, como na cena do cachorro quente.
O roteiro de Jon Hartmere faz uma melhoria em relação ao original (de Éric Toledano e Olivier Nakache): Dell se interessa pelas mordomias do novo trabalho e aproveita o emprego para melhorar de vida, contudo o seu maior motivador é o seu filho, a quem ele quer dar o exemplo. É por isso que, quando um amigo lhe oferece um “serviço fácil”, ele refuta a ideia, respondendo que “nunca foi fácil”. O backstory das personagens é um pouco obscuro: não fica claro por que Phillip não gosta do vizinho (a antipatia parece gratuita), tampouco sendo explicada a má relação entre Dell e sua ex, Latrice (interpretada de forma competente pela Michaela de “How to get away with murder”, Aja Naomi King). Essas são algumas das lacunas do script, que deixa espaço muito grande para a sutura do espectador.
Outra inovação do roteiro se refere a Yvonne, mudança que, todavia, não é muito benéfica, justificando-se apenas para dar maior espaço à sua intérprete, a sempre ótima Nicole Kidman. Mesmo assim, a atriz é desperdiçada, já que o papel é bastante secundário e a subtrama é extremamente superficial. Na prática, deram maior importância à personagem apenas porque a atriz que a interpreta é famosa. Por outro lado, Lily (Julianna Margulies), a mulher das cartaz, recebe um contorno preciso e crível.
A direção de Neil Burger não é merecedora de elogios: o primeiro ato, sem motivo, é filmado com a câmera na mão (e depois muda, como se fosse transmitir a ideia da transformação de Dell, porém outros recursos seriam preferíveis); outro exemplo é a chegada de Dell na casa de Phillip, na qual a pouca profundidade de campo não consegue simular um recinto grande. A montagem erra ao não mostrar a sequência do início até o fim (quando retorna, o espectador precisa lembrar o que tinha ocorrido); o quadro que Dell pinta é ridículo (o que gera inverossimilhança quando da sua venda) e a casa luxuosa de Phillip não é explorada em seu potencial (salvo quando mostra o lindo banheiro de Dell).
A trilha musical é uma grata surpresa, em especial pelas escolhas coerentes de Rob Simonsen – árias como “Nessun dorma”, “Casta diva”, “Queen of the night aria” e “La donna è mobile”. Nesse sentido, no caso da primeira, o uso é magistral tanto pela surpresa da versão escolhida quanto pela inserção em si (que inicialmente é intradiegética); quanto à última, a sincronização com a cena é exemplar.
Depois da pergunta referente aos limites da cópia, a pergunta clichê é: qual é melhor (original ou remake)? A resposta dada, em geral, vem de um inconsciente coletivo: o original é sempre melhor. No caso da relação entre “Intocáveis” e “Amigos para sempre”, a ideia é válida: este não é ruim, mas aquele é muito superior.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.