“INTOCÁVEIS” – Amálgama humano
Comédia e drama são gêneros antagônicos, o que não impediu o surgimento de comédias dramáticas (ou “dramédias”, como chamam alguns). Não raras vezes, a mistura adota clichês, tornando-se monotônica ou simplista. INTOCÁVEIS não chega perto desse modelo tedioso.
No longa, Philippe, um tetraplégico rico e culto, contrata Driss, um jovem de periferia, para ser seu cuidador. A despeito da falta de preparo de Driss, com o tempo, os dois formam uma amizade inesperada. O desfecho é previsível, mas não o encaminhamento dado à trama.
Salvo no primeiro ato, quando aparecem candidatos (à vaga de cuidador) que falam bobagens perante Philippe (embora tenham bons currículos), o protagonismo da comédia fica com Driss. Logo no início, seu jeito truculento (ao furar a fila grosseiramente) e exageradamente seguro (quando fala com Philippe sobre Berlioz, é incapaz de admitir a própria ignorância) rende boas piadas. Quando Philippe lhe pergunta sobre suas motivações, sua resposta, embora cômica, é muito verdadeira. Na prática, Driss se revela uma criança em corpo de adulto (como na cena da água quente), inclusive o grande (no sentido literal, físico) Omar Sy consegue tirar bom proveito da sua estrutura desengonçada.
Antes desconhecido, é nesse filme que Sy eleva a carreira a um patamar elevado, pois transita magistralmente entre a comédia e o drama. O arco dramático de Driss se revela mais complexo do que parece, exigindo do ator nuances interpretativas que demonstrem a transformação da personagem ao final, que amadurece muito. A maneira como ele (personagem) lida com o homem estacionado irregularmente ao final é bastante simbólica nesse sentido, porém o trabalho do ator também é significativo – basta ver o sorriso quando visita um barbudo Philippe, que demonstra alegria autêntica, muito distinto do sorriso autoconfiante do início.
O destaque da película, no que se refere à atuação, é Omar Sy. Ao seu lado, porém, está o experiente François Cluzet, que torna Philippe uma figura bastante humana e real. A tarefa mais difícil para o ator era compreender que o papel exigia tranquilidade, pois Philippe não aceita ser objeto de pena. É isso, inclusive, que se torna um diferencial em Driss, que não o trata com compaixão, como todas as outras pessoas fazem. O grande drama de Philippe não é a tetraplegia, mas um backstory que ele mesmo revela e que – provavelmente para a sua própria surpresa – é seu contratado que o ajuda a superar. Além disso, Cluzet transmite bem a alma destemida da personagem, que não apenas rejeita a pena alheia, mas também não admite sentir pena de si – ao contrário, faz piadas, por exemplo, quando Driss coloca meias nele.
No que se refere aos coadjuvantes, mesmo não tendo um arco bem delineado, é interessante perceber que vários deles conseguem ter personalidade própria (e, em última análise, vida própria) quando interagem com a dupla principal. Magalie (Audrey Fleurot) é constante interesse afetivo de Driss; Élisa (Alba Gaïa Kraghede Bellugi) é o arquétipo da adolescente vivendo as dores típicas da idade – e seu namorado, Bastien (Thomas Solivérès), participa de um humor leve e divertido, suavizando o humor mais ácido e perspicaz, que predomina; e até mesmo Yvonne (Anne Le Ny), que parece ser a menor entre as personagens secundárias, mostra ao final que não vive para trabalhar.
Visualmente, o design de produção é modesto, exceto, talvez, nos ornamentos da casa de Philippe. O figurino é bem utilizado como contraposição (principalmente quando aparece um cuidador de jaleco) e para expor a personalidade de algumas personagens (em especial a dupla principal, é claro, enfatizando a sobriedade de Philippe e o estilo despojado de Driss).
A dupla Eric Toledano e Olivier Nakache se revela mais inspirada no roteiro do que na direção – embora nesse quesito não se possa falar em má qualidade. Afinal, o texto, além de bem construído, é comovente sem jamais recair na pieguice (comum em comédias dramáticas). A única criatividade imagética da dupla reside na rima visual da banheira, ornamento que é quase um fetiche de Driss. O prólogo dúbio é uma escolha inteligente, para fins introdutórios, deixando o espectador com uma leve sensação de estranhamento ao ver Driss e Philippe inicialmente sérios. A sequência é tão boa que, além de um tênue suspense, insere comédia e consegue empolgar nos minutos seguintes.
Na verdade, a empolgação é resultado do sensacional efeito emotivo dado à trilha musical. O apreço de Driss por Earth, Wind & Fire não apenas combina com a sua personalidade como resulta em sequências bem alegres, ao som da clássica “September” e da dançante “Boogie Wonderland”. A primeira canção catapulta um novo momento no prólogo; a segunda, embala uma cena épica, na qual Omar Sy ratifica seu trabalho fenomenal no longa. Outra música que é usada com função narrativa é “Feeling good”, na potente voz de Nina Simone. No caso das músicas instrumentais de Ludovico Einaudi, que assina a trilha (inclusive “Una mattina”, a música-tema), é impressionante a sua compatibilidade com o espírito da produção, cuja singularidade audiovisual se traduz no aspecto musical. “Intocáveis” é um filme que consegue reunir o melhor do drama ao melhor da comédia. Uma dualidade que Philippe e Driss representam bem como mescla, cada um sem ser completamente dramático nem completamente humorístico, amálgama que representa, de certo modo, a própria humanidade.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.