“COMO TREINAR O SEU DRAGÃO” – O poder da boa animação
A Dreamworks Animation pode não ser o primeiro estúdio lembrado em uma concorrência que abarca também a Pixar e a Disney, porém definiu paradigmas para a animação. Shrek marcou sua importância em 2001 com referências visuais bem humoradas aos contos de fada. Já COMO TREINAR O SEU DRAGÃO construiu seu nome em 2010 através de avanços da computação gráfica e da profundidade dramática de uma história mais complexa do que a sinopse pode aparentar à primeira vista.
O filme se passa na fictícia ilha de Berk, onde os vikings vivem e se dedicam a matar dragões. Soluço é um adolescente que não corresponde à tradição de seu povo e, portanto, frustra as expectativas do pai Stoico; quando encontra um dragão Fúria da Noite incapacitado de voar, Soluço desenvolve uma relação com o animal que o faz repensar o mundo sob outro ponto de vista. A estrutura da narrativa apresenta uma complexidade louvável por fugir de maniqueísmos fáceis, devido à ausência de um antagonismo vilanesco no conflito central – o impasse se encontra na incompatibilidade entre a característica guerreira dos vikings (representada pela crença de que os dragões seriam naturalmente uma ameaça) e a personalidade pacífica e delicada do protagonista, incapaz de seguir os planos do pai.
A indicação de que Soluço não é um viking clássico aparece não apenas no roteiro. Seu físico franzino, em contraposição aos outros personagens corpulentos e fortes, e roupas comuns que não remetem à cultura guerreira (a falta de armaduras e armas, além do uso de um traje feito de pele de animal como colete) são demonstrações de seu lugar único na sociedade. A própria caracterização dos outros jovens em treinamento para matar dragões evidencia o aspecto guerreiro do povo e a natureza muito particular do protagonista: os irmãos Cabeçadura e Cabeçaquente disputam entre si quem é o melhor; Perna-de-Peixe tem um conhecimento enciclopédico sobre os dragões; Melequento é o mais agressivo entre todos; e Astrid tem muitas habilidades de luta.
Soluço também é único por ser o primeiro a não se relacionar com os dragões de forma violenta e belicosa. Ao tentar capturar o Fúria da Noite, ele o acertou em uma parte da cauda que daria equilíbrio, impedindo-o de voar novamente. A partir daí, os dois passam a conviver juntos e uma amizade surge dessa relação: Soluço lhe dá o nome de Banguela, ambos conquistam a confiança um do outro a partir do respeito e da preocupação recíproca e dividem momentos juntos que rendem situações engraçadas e comoventes (os dois se alimentando e Banguela conseguindo voar graças a um artefato construído por Soluço e colocado na cauda). A afeição gradual entre os dois é mostrada, principalmente, pelos olhos do animal: eram fendas perigosas enquanto ainda desconfiava das intenções do humano; em seguida, tornaram-se grandes e amigáveis com a proximidade construída.
O arco desenvolvido entre Soluço e Banguela compõe um conflito dramático com muito mais camadas do que uma análise rápida permite supor. Não se trata apenas de um choque de gerações entre as expectativas e os desejos do filho (esse arco existe e faz o protagonista encontrar seu próprio lugar na sociedade, não precisando seguir os planos do pai); trata-se também de mostrar como um povo pode ficar tão preso a práticas tradicionais que não perceba seus problemas e preconceitos – a cultura, por mais que exija muito esforço, pode ser desconstruída e transformada, como no caso da violência dos vikings aos dragões, praticada erroneamente a partir da crença de que os animais seriam naturalmente um risco à sua sobrevivência).
Do ponto de vista visual, a exuberância técnica aparece no design de produção: a ilha onde moram é construída isolada do resto do mundo e apenas com o mar próximo; suas diferentes áreas são facilmente demarcadas, tendo espaços reservados para a ferraria, a pesca, a plantação e o treinamento para a guerra. Além disso, a animação computadorizada cria personagens humanos com traços cartunescos (por exemplo, Perna-de-Peixe), porém com detalhes físicos realistas (algumas leves sardas no rosto de Soluço); e também desenha com originalidade a variedade de espécies de dragões (gordos, esguios, de cores diversas e com mais de uma cabeça). O próprio Banguela é um destaque à parte, tendo uma pele escura, aparentemente lisa, com escamas discretas e grande expressividade facial.
Outro componente estético importante para a narrativa são as sequências de voo filmadas por Chris Sanders e Dean DeBlois. Além de terem sua beleza visual amplificada pelos planos gerais e abertos utilizados, elas traduzem momentos distintos atravessados pelos personagens: por exemplo, a consolidação da amizade entre Soluço e Banguela, a demonstração de uma imagem pacífica dos dragões para Astrid e os riscos na sequência de ação do terceiro ato.
O filme apresenta uma escala crescente de qualidade que chega a um desfecho corajoso diferente da maioria das outras animações – a conclusão não se furta de mostrar como um perigo real acarreta sérias consequências. “Como treinar o seu dragão” utiliza seu final corajoso para sacramentar a ligação entre Soluço e Banguela e ressaltar como seres diferentes não precisam ser naturalmente inimigos. É com o respeito e a cooperação mútua que essas vidas distintas superam preconceitos, adversidades e crescem em conjunto.
Um resultado de todos os filmes que já viu.