“BLACK MIRROR: BANDERSNATCH” – Quando o espectador se torna personagem e criador
Em 2011, a série “Black Mirror” foi lançada tendo como tema os impactos negativos da dependência da humanidade em relação à tecnologia (redes sociais, celulares, realidades virtuais, robótica…). Através de projeções fantasiosas dos usos de artefatos tecnológicos – alguns já verossímeis atualmente, outros especulados para o futuro -, a produção se notabilizou por traçar um retrato pessimista da natureza humana. Todas essas discussões são expandidas pelo filme interativo BLACK MIRROR: BANDERSNATCH, lançado no fim do ano independentemente da nova temporada, prevista para 2019.
A trama básica acompanha o jovem programador Stefan que tenta transformar um livro interativo em um videogame, capaz de fazer os jogadores tomarem decisões narrativas durante o jogo. Conforme a programação avança, mundo real e virtual se misturam criando sérios problemas. A proposta de interatividade presente na diegese combina com a estrutura do filme lançado pela Netflix: cada espectador, enquanto assiste, escolhe entre duas opções para as ações do protagonista e para os rumos da história, que aparecem na parte inferior da tela. A cada escolha feita, a narrativa é direcionada por rotas que dependem da vontade de cada pessoa, não sendo, necessariamente, iguais. Não se trata, portanto, de um recurso gratuito apenas para chamar a atenção, pois insere o público dentro da atmosfera do videogame.
As melhores realizações de “Black Mirror” são aquelas que estimulam reflexões profundas para além do tempo de duração da obra. O filme é mais um exemplar da complexidade temática construída pelos criadores ao trazer uma sucessão de questões digna de múltiplas interpretações: realidades paralelas, livre arbítrio, significado do tempo, poder das escolhas, traumas pessoais, diferentes percepções de controle psicológico e caracterizações da estrutura narrativa de histórias em geral. Cada um dos temas são levados a uma dimensão chocante (algo muito marcante dentro da série) por terem um desenvolvimento inesperado e abordarem aspectos desagradáveis e incômodos da existência humana.
A estrutura interativa é orgânica ao desenvolvimento da trama. As primeiras escolhas são simples e de consequências inofensivas (como o alimento do café da manhã e a música escutada no ônibus), já as seguintes, gradualmente, ganham uma importância maior e desdobramentos mais sérios para os rumos de Stefan e da história (decisões no trabalho de programação e o consumo ou não de uma droga). Independentemente de qual seja a escolha, a experiência cinematográfica do público se torna muito ativa porque cada pessoa pode construir sua própria narrativa: poder, por exemplo, definir a trilha sonora de determinada cena e os arcos dramáticos atravessados pelo protagonista.
A montagem é um elemento fundamental para a organização da interatividade, tornando orgânica a execução das escolhas: após a decisão do que acontecerá, o protagonista age de forma realista e não como se estivesse pausado à espera da ação a ser definida; já em outros momentos, ele demonstra indecisão e desagrado em relação ao que deve fazer. Outro procedimento utilizado de modo não convencional é a quebra da quarta parede, com o objetivo de tornar o público mais participativo e a trama autoconsciente: o espectador é colocado como um personagem que interage com Stefan e cenas metalinguísticas são feitas para comentar o fazer cinematográfico (por vezes, sutilmente através de metáforas do poder criativo da arte, já por outros, explicitamente através da construção e da reconstrução da história).
As diferentes possibilidades de desenvolvimento da trama possibilitam ao diretor David Slade adotar vários estilos de direção. Ele estabelece um estudo de personagem ao trabalhar os traumas e a personalidade retraída de Stefan com planos fechados e de duração vagarosa; constrói um segmento surpreendente com sequências de ação, a partir de cortes rápidos e de uma estética que remete às HQ’s; filma passagens oníricas com uma paleta de cores sombrias, assim como cenas psicodélicas, durante uma sequência de alucinação, com a exibição de imagens surreais. O cineasta, dessa vez, consegue unir uma estética particular às necessidades do roteiro, ao invés do que fez no episódio “Metalhead” da quarta temporada da série.
Ao acompanhar Stefan de perto durante todo o filme e decidir seu destino, o desempenho do ator Fionn Whitehead salta aos olhos em comparação com o resto do elenco. Ele convence como um jovem introspectivo (tendo o corpo encurvado nos momentos de timidez, um olhar caído que encara as pessoas de baixo para cima e se expressando por murmúrios quando não se sente à vontade) e de semblante perdido, à medida que fica obcecado pela conclusão do jogo e não compreende a espiral de acontecimentos bizarros em que se envolve. Porém, não convence tanto quando precisa demonstrar as dores que carrega de uma tragédia de infância e seus efeitos durante a vida adulta.
“Black Mirror: Bandersnatch” é, acima de tudo, uma experimentação que reflete sobre o lugar do público na obra audiovisual e a forma como as histórias são criadas. Adentrando no universo dos filmes, “Black Mirror” conseguiu expandir seu conceito em torno da análise da penetração da tecnologia em nossas vidas – não apenas no que se refere ao tema, mas também incorporando tais elementos na linguagem. A interatividade faz de cada espectador um sujeito ativo no modo específico como sente a tecnologia em seu dia a dia e compreende a história contada. A subjetividade humana da experiência cinematográfica e humana é retratada explicitamente em uma obra que pode se abrir a novos caminhos a cada nova revisita.
Um resultado de todos os filmes que já viu.