“A VIAGEM DE CHIHIRO” – Exercício para mentes e corações
Falar que animação é um gênero significa esvaziar a riqueza temática e estética de tantos filmes portadores de muitos estilos combinados. Trata-se, na realidade, de uma técnica capaz de misturar comédia, musical, aventura, drama e diversos outros gêneros, sem precisar se ater a um único exclusivamente. A VIAGEM DE CHIHIRO é uma das muitas representações possíveis do potencial da animação – afinal, diferentes recursos e tons são mobilizados em nome de uma história sobre crescimento e amadurecimento em múltiplas camadas.
O filme é protagonizado pela menina Chihiro, que acompanha os pais em uma viagem de mudança, mesmo a contragosto. Subitamente, ela se vê em uma situação desesperadora: seus pais se transformaram em porcos após comerem em um restaurante desconhecido. A garota é obrigada a tentar reverter o ocorrido, mergulhando em um mundo fantasioso localizado onde parecia ser um parque de diversões desativado. Até 2001, ano de lançamento da obra, o estúdio Ghibli e o cineasta Hayao Miyazaki eram desconhecidos fora do Japão; a situação se modificou a partir desse ano, quando o mundo enfim percebeu que sensibilidade artística e profundidade dramática e humana não eram monopólio da Disney. O traço bidimensional e linear das animações feito, em geral, a pincel (apenas pontualmente produto da computação gráfica) encantou o público e demonstrou que não utilizar técnicas sofisticadas não é uma limitação nem um erro.
As qualidades visuais da produção são realçadas à medida que a protagonista penetra no universo fantástico onde seus pais estão presos. Chihiro só conseguiria se proteger da bruxa Yubaba, que governava aquele mundo, e salvar seus progenitores conseguindo um trabalho – posto obtido como funcionária em uma casa de banhos, que atendia a deuses e a criaturas diversas. Ao apresentar os distintos espaços da narrativa, o design de produção mostra como os ambientes fantasiosos estão próximos do mundo real e têm contato com ele: é possível reconhecer habitações típicas do Japão (moradias com largos corredores e portas deslizantes e as casas de banho com aposentos espaçosos, por exemplo) ou alteradas por um tom imaginativo, marcado por cores vibrantes e simbólicos da magia existente (a residência luxuosa da bruxa e a linha de trem que corta o povoado, dentre outros).
A concepção visual das criaturas é outra comprovação do talento de Miyazaki e do estúdio Ghibli. Algumas são animais concebidos com detalhes físicos exageradamente cartunescos (especialmente os sapos de corpos alargados e as funcionárias das casas de banho com uma fisionomia humana, porém com uma pele mais elástica) e outras são muito distintas dos seres humanos (deuses criados a partir das tradições da cultura nipônica, como o deus do rio caracterizado como um dragão esguio e com cores frias, assim como o monstro Sem Face, como uma criatura transparente mascarada). Além disso, há de se destacar a composição visual da bruxa, tendo suas características físicas como a evocação da ameaça que representa: a pele enrugada e o tamanho pequeno e disforme de seu corpo para a cabeça desproporcionalmente grande.
As sutilezas dramática e humana do filme se relacionam à trajetória narrativa e emocional de Chihiro: no início, ela é uma criança indolente e que reclama constantemente da mudança; conforme a trama avança, ela se torna mais madura e corajosa. O percurso feito é a já conhecida aventura de “volta para casa”, exigindo dela a conquista de uma postura ativa que lhe permita conseguir o emprego na casa de banhos e salvar os pais e o amigo Haku (mesmo estando afastada de seus progenitores). Todo o arco é movido pela jornada do primeiro amadurecimento, feito na infância, quando novos mundos se abrem para as crianças – enquanto isso, a protagonista precisa preservar a identidade da feiticeira, que rouba os nomes de todos os seres habitantes daquele mundo (algo extremamente simbólico da trajetória percorrida pela personagem).
A aventura enfrentada é permeada por acontecimentos mágicos impensáveis para a realidade comum: feitiços, criaturas que assumem mais de uma forma (podendo crescer ou diminuir de tamanho) e mundos fantásticos com suas regras próprias (o deus do rio “amaldiçoado” pela sujeira do ambiente e o monstro Sem Face movido pela compulsão de absorver tudo que estiver à sua frente). Ainda assim, o estilo lúdico da narrativa não a torna voltada apenas para o público infantil; ela se comunica com jovens e adultos, por considerar as crianças seres pensantes que não precisam ser infantilizados para acompanhar uma animação, e também por oferecer momentos sérios de contemplação ou de violência para um público mais velho.
Do ponto de vista temático, também há aspectos complexos que se entrelaçam com a visão de mundo dos japoneses. O impacto que o ser humano provoca sobre a natureza é o principal deles, sendo discutido através da reflexão de como os japoneses possuem um modo especial de se relacionarem com o seu meio. A veneração respeitosa à natureza, detentora de sua lógica própria, contrasta com o comportamento predatório de diversos outros povos no que se refere à relação com o ambiente – esse segundo ponto é abordado, por exemplo, pela desconfiança com que os funcionários da casa de banhos tratam Chihiro (ao sentirem seu cheiro de ser humano muito forte) e pela sujeira do deus do rio provocada pela poluição humana (muitos objetos descartados inconsequentemente são retirados de seu corpo durante o banho).
Em 2001, “A viagem de Chihiro” fez história ao conquistar o Oscar de melhor animação, desbancando produções de grandes estúdios hollywoodianos. A partir desse ano, muitos daqueles que desconheciam o valor do estúdio Ghibli e de Hayao Miyazaki se maravilharam com o esplendor visual de mentes tão criativas e sensíveis. Através desse filme, espectadores espalhados por diferentes cantos do mundo puderam também embarcar em uma jornada de amadurecimento e crescimento tal qual Chihiro: no caso de quem assistia, em direção a um novo mundo de possibilidades onde corações e mentes poderiam se fartar com a sensibilidade de um grande contador de histórias.
Um resultado de todos os filmes que já viu.