“ASSUNTO DE FAMÍLIA” – Família perfeitamente imperfeita [20 F. Rio]
“Para ser mãe, basta colocar uma criança no mundo?“. A frase dita por determinado personagem de ASSUNTO DE FAMÍLIA resume um dos pontos centrais do filme: o que torna um conjunto de pessoas uma família? Esses e outros questionamentos análogos transbordam do novo trabalho de Hirokazu Koreeda, importante demonstração de como as relações familiares na contemporaneidade assumem conotações e características distintas independentemente das origens, do parentesco e da moralidade.
Na história, Osamu e seu filho Shota praticam pequenos furtos em lojas das redondezas para levar diferentes produtos para sua casa, onde estão a esposa Aki, a irmã dela Nobuyo e a avó Hatsue. Certo dia, eles se deparam com a garotinha Yuri, aparentemente abandonada próxima a uma residência da região, e decidem levá-la para sua casa, mesmo sendo pobres. A partir daí, se formam novos laços familiares, que precisarão enfrentar a descoberta de segredos enterrados e as dificuldades do dia a dia.
Toda a narrativa do filme se sustenta na ideia de que as relações dentro de uma família são estabelecidas através do amor e do afeto, apesar das adversidades. À primeira vista, pode parecer algo clichê ou piegas, porém, a cuidadosa e discreta direção de Hirokazu Koreeda evita um tom melodramático, entregando uma obra singela e tocante. A base desse resultado vem da maneira como o cineasta filma a história e seus personagens: em um ritmo lento e cadenciado, através de planos longos, estáticos e centrados nos atores. A lentidão não significa que nada de importante está ocorrendo, significa um processo de imersão do público à rotina e às dinâmicas dos personagens está sendo feito – toda uma gama de camadas extras é gradualmente trabalhada pelo diretor para construir indivíduos complexos e, por isso, muito humanos.
A partir da proximidade estabelecida entre espectador e universo cinematográfico, é possível acompanhar a trajetória de personagens dúbios, ambíguos e de moral extremamente complexa ou duvidosa. A começar pela forma como a família se constrói, os interesses, as facilitações e a sobrevivência, por vezes através de meios ilegais, são os fatores primordiais – nem sempre vínculos sanguíneos promoveram a união daquelas pessoas. Além disso, a vivência de cada personagem é marcada por furtos, sequestros e enganações, “trambiques” que envolvem também as crianças Shota e Yuri – o garoto já praticava os roubos há algum tempo, atitude logo ensinada e seguida pela garota.
A ambiguidade está muito presente no arco dramático do casal formado por Osamu e Aki. Graças às atuações de Lily Franky e de Mayu Matsuoka, os dois personagens são permeados por contradições reais e palpáveis: praticam atos ilícitos, têm uma moral condenável, têm segredos comprometedores do passado, educam seus filhos de modo problemático e, ainda assim, demonstram afeto genuíno entre eles e as crianças (a sequência de sexo entre os dois é realista e terna sem perder a simplicidade). Dubiedade semelhante se passa com as crianças Shota e Yuri, interpretadas por Jyo Kairi e Miyu Sasaki, que não se sentem bem com seus pais biológicos ou só encontram amor com pais de atitudes reprováveis moralmente (Shota cresceu se sentindo tão querido que não se interessou em buscar sua origem e Yuri é maltratada e abandonada pela família biológica).
As adversidades da vida dos personagens também estão relacionadas às suas condições socioeconômicas. O design de produção estabelece uma casa apertada, de poucos e estreitos cômodos, repleta de objetos empilhados e desorganizada, porém aconchegante. A direção de Hirokazu Koreeda torna esse aspecto ainda mais evidente ao posicionar a câmera no batente das portas ou em outros pontos que destaquem a característica da residência.
Somente seria possível falar em uma complexidade das caracterizações dos personagens e das relações sociais se houvesse uma narrativa realista. O realismo é construído pela direção, mas também pelo desenho sonoro do filme: há uma predominância de sons diegéticos dos ambientes frequentados por aquelas pessoas, que promovem uma eficiente imersão; assim como a majoritária ausência de trilha sonora, apenas pontuada por alguns breves acordes instrumentais compatíveis com as emoções de determinadas cenas.
“Assunto de família” consegue se equilibrar na difícil posição de mostrar personagens e situações reprováveis sem realizar julgamentos morais, fossem eles positivos ou negativos. Não se trata de enaltecer ou depreciar tais comportamentos, trata-se de compor um cenário realista e humano sobre indivíduos na área cinzenta entre o bem o mal. Ou melhor, de uma família que pode ter amor apesar dos erros e da imoralidade. Os personagens retratam uma família imperfeita e, por isso mesmo, perfeitamente real e crível.
*Filme assistido durante a cobertura da 20ª edição do Festival do Rio (20th Rio de Janeiro Int’l Film Festival).
Um resultado de todos os filmes que já viu.