“RAFIKI” – Boas intenções nem tão bem executadas assim [20 F. Rio]
Festivais de cinema oferecem oportunidades únicas para os cinéfilos que, dificilmente, podem ser replicadas no circuito comercial. Poder assistir ao filme queniano RAFIKI é uma delas, pois permite conhecer outra cultura, sensibilidade artística e forma de produção cinematográfica que, em geral, tem dificuldades para ganhar o mundo. Ainda que exista essa importância e qualidade temáticas, a obra possui algumas fragilidades comprometedoras.
Inspirado no conto “Jambula Tree“, de Mônica Arac de Nyeko, a história segue a amizade entre Kena e Ziki até se tornar um romance. O caso de amor entre elas afeta as duas famílias, rivais politicamente, e a comunidade conservadora onde vivem, que não aceitam o relacionamento. Ao longo da narrativa, há alguns traços característicos da cultura africana, como a musicalidade própria e a fusão religiosa entre cristianismo e práticas espirituais locais, porém o foco está em um tema universal: a denúncia contra o preconceito em relação à orientação sexual em prol de um grito por liberdade.
Esse preconceito é retratado de diversas formas diferentes em uma escala crescente. “Piadas” aparentemente inofensivas feitas para uma rapaz homossexual que vivia naquela comunidade (personagem que, mesmo sem diálogos, expressa as dores por viver cercado pela discriminação); duas senhoras se intrometem na vida das duas jovens e fazem fofocas quando descobrem o romance; as famílias das protagonistas não aceitam o amor; e a religião é utilizada como justificativa para a intolerância e para práticas condenáveis, como a ideia da homossexualidade ser uma maldição feita por demônios. Todas as situações de hostilidade colocam para Kena e Ziki o impasse entre serem livres para se amar e conseguirem ter segurança.
O relacionamento entre as duas é construído muito mais pela química das duas atrizes contracenando juntas do que pela narrativa em si. O elenco em geral não corresponde nos momentos de conflitos dramáticos e não alcança a potência necessária para tais ocasiões, inclusive no caso das protagonistas. Mesmo assim, Samantha Mugatsia e Sheila Munyiva conseguem cativar o espectador quando estão juntas em função do carinho e do afeto entre elas e do fato de suas personalidades se complementarem: Kena é uma mulher contida, discreta, que tem o sonho de se tornar enfermeira e é masculinizada pelos habitantes do local (exemplo na cena em que joga futebol e seus amigos dizem que ela joga como se fosse homem); Ziki é irreverente (está constantemente dançando nas ruas e tem tranças coloridas), sensual e se entrega ao amor mais rapidamente que Kena.
Se as atrizes convencem como duas pessoas apaixonadas, a narrativa não faz sua parte a contento. O arco carece de preparação, sutileza e construção, já que a relação é estabelecida apressadamente e sem atenção aos detalhes. Pouco tempo depois de se conhecerem – o mote da primeira conversa entre elas seria a disputa política entre as famílias, porém é algo abandonado no encontro em si, sem qualquer menção -, a paixão já surge. Além disso, toda a subtrama envolvendo as divergências eleitorais de seus pais não tem função no conflito dramático do filme, que se estabelece com o preconceito da orientação sexual.
A execução técnica problemática também aparece na condução da câmera por Wanuri Kahiu em algumas sequências. Especificamente, duas brigas são mal filmadas e coreografadas por conta dos movimentos bruscos da câmera, enquadramentos confusos e de uma geografia espacial nada compreensível. Em termos gerais, a diretora acerta na discrição dos planos americanos tradicionais e da iluminação realista e na recorrência dos planos-detalhe, que enfocam a troca de carinhos entre as duas personagens.
A montagem e a mixagem de som são outros aspectos frágeis no filme. Em duas sequências, o uso da montagem paralela para intercalar ações separadas por um intervalo mínimo de tempo não produz significado algum, além de ser desnecessário. Atrelado a esse problema, o desenho sonoro das sequências não consegue alinhar os sons dos diálogos e a movimentação dos lábios das personagens – falha provocada pela união de planos com tempos ligeiramente diferentes.
Assistir a “Rafiki” provoca experiências heterogêneas, ligadas ao que o filme representa e à sua execução concreta. A curiosidade de ver uma produção queniana e de acompanhar a singeleza e a beleza da relação amorosa entre Kena e Ziki – exemplificada na vivacidade de um design de produção e de uma fotografia construídas com cores fortes – contrasta com os problemas narrativos. Na balança, tais pontos tornam o filme mediano.
*Filme assistido durante a cobertura da 20ª edição do Festival do Rio (20th Rio de Janeiro Int’l Film Festival).
Um resultado de todos os filmes que já viu.