“NOITE DE LOBOS” – Um suspense hobbesiano
Nas palavras do filósofo Thomas Hobbes, “o homem é o lobo do próprio homem”. A natureza humana violenta e autodestrutiva seria, portanto, a razão de sua própria perdição. Nenhuma outra tese filosófica se encaixaria tão bem em NOITE DE LOBOS , nova produção original Netflix, não apenas pela menção ao animal no título, mas também pelos tipos de personagens presentes na narrativa.
A adaptação cinematográfica do livro escrito por William Giraldi segue os passos do naturalista e escritor Russell Core. Ele recebe uma carta de uma mulher no Alaska, pedindo sua ajuda para encontrar o filho dela levado por lobos. Ao chegar ao inóspito local, Russell se depara com um mistério que vai além de sua imaginação. À primeira vista, a sinopse pode indicar uma história de suspense tradicional baseada num desaparecimento e numa investigação, porém o filme responde ao mistério central já no fim do primeiro ato. A partir daí, ele convida o público a mergulhar numa trama de choques, estranhamentos e desenvolvidos inesperados que se preocupa muito mais com o estudo de personagens.
Ao invés de se apegar ao enigma do paradeiro da criança, o roteiro se concentra no suspense provocado pelo ambiente insólito do Alaska e pelo estranho comportamento de muitos que vivem ali. O diretor Jeremy Saulnier move sua câmera para registrar o incomum após a tragédia: a dificuldade em expressar emoções, as manifestações surpreendentes de violência, as atitudes incompreensíveis e irreais e os riscos do clima e dos ataques dos lobos. O sentimento dominante de desconforto é ainda mais realçado pelo olhar deslocado do protagonista Russell, ponto de vista adotado no início da narrativa para tornar o espectador incapaz de assimilar tudo o que acontece.
Esse incômodo que preenche toda a experiência cinematográfica é materializado pela fotografia de Magnus Nordenhof Jonck. A paleta de cores alterna entre a escuridão da noite e o azul dessaturado da neve, criando uma ambientação opressiva para os personagens. É possível sentir os efeitos do frio intenso e o mal-estar do contato com a neve em cada indivíduo que se vê – uma capacidade de imersão que faz transbordar para fora da tela as adversas condições geográficas.
Além disso, a condução da trama por Jeremy Saulnier completa o estranhamento por se distanciar de convenções ou de soluções fáceis. O que mais o interessa é o estudo da violência como um produto do meio, uma condição que embrutece os indivíduos e os faz naturalizar comportamentos violentos nada aceitáveis. Pode ser num local isolado pela distância e pelas baixas temperaturas, numa guerra internacional (situada no Iraque, onde o pai do garoto estava) ou no convívio ainda conflituoso entre os nativo-americanos e os homens brancos norte-americanos, o que o filme mostra é a dimensão violenta que o ser humano carrega consigo (muitas vezes sem explicação racional, mas ela está lá).
Para concretizar um estilo único, o cineasta transita muito bem por diferentes gêneros. Sustenta-se, principalmente, no suspense construindo planos e arcos dramáticos não usuais para retratar a trajetória violenta do casal separado de seu filho, inclusive sugerindo a existência de rituais sobrenaturais no local. Respinga ocasionalmente no terror ao ressaltar a violência e a loucura do casal Slone após a perda da criança, através de planos fechados nos resultados de sua brutalidade. E mostra eficiência nas sequências de ação, com planos gerais sem cortes, que surpreendem quando algo radical acontece, e com um domínio da câmera numa complexa sequência de tiroteio (eficiente também por estabelecer muito bem a geografia dos acontecimentos).
Por fim, a singularidade da narrativa não seria possível sem as performances de Riley Keough e Alexander Skarsgard. Nas sequências de apresentação de seus personagens, já se pode perceber aquilo que será mais tarde aprofundado e desenvolvido: a Medora Slone, vivida pela atriz, é uma mulher confusa, de emoções ambíguas e capaz de ações inusitadas segundo uma lógica distorcida – seu semblante sempre revela um distúrbio emocional -; e Vernon Slone, interpretado pelo ator, é um homem que tem a violência como parceira, e tenta justificá-la através de uma moral condenável, porém o que acaba demonstrando é uma psicopatia ameaçadora – sua expressão inexpressiva, diferentemente da esposa, revela a falta de emoções e o domínio que a violência exerce sobre ele. O elenco principal somente deixa a desejar com Jeffrey Wright, já que o ator perde seu protagonismo para o casal no segundo ato e apenas funciona como um personagem observador e reativo.
“Noite de lobos“, absorvendo a tese hobbesiana sobre o homem, não pretende ser um suspense que dará todas as respostas às perguntas que faz nem que seguirá caminhos previsíveis. A proposta é ser um filme de atmosfera, uma experiência desafiadora e desconfortável que aborda a maldade humana (já antecipada pela frase de abertura: “incorrigível no encalço do mal, mas gritando a verdade”). E, nesse sentido, ele entrega aquilo a que se propõe.
Um resultado de todos os filmes que já viu.