“SOMBRAS DA VIDA” – Os fantasmas da vida real
A sensação de medo no cinema nem sempre pode ser resultado de monstros, psicopatas assassinos ou forças sobrenaturais. SOMBRAS DA VIDA é o exemplo de como as apreensões universais da humanidade também podem provocar um tipo de terror que não assume uma forma definida: a morte, a solidão e o vazio existencial. As angústias podem, portanto, ser reais e tangíveis por lidarem com os receios da própria natureza humana.
No filme, um homem recém-falecido retorna, sob a forma de um fantasma, à sua casa e passa a observar a tristeza de sua esposa e o transcorrer do tempo sem poder ser visto por ninguém. A primeira camada dramática do roteiro já fornece a primeira grande questão a ser abordada: como lidar com o luto da perda de alguém querido? Especialmente quando as memórias são tão fortes e a sensação de sua presença ainda se faz notada? A construção dos planos, tendo o fantasma em foco e ao fundo da cena próximo de sua esposa, cria visualmente a melancolia diante do afastamento forçado.
Em conjunto aos planos construídos há a atuação de Rooney Mara. Sendo a principal atuação do elenco, a atriz compõe uma personagem de múltiplas emoções, retratadas apenas por suas expressões faciais (dada a pequena quantidade de diálogos do longa): o amor e os desentendimentos típicos de qualquer casal, a infelicidade pela morte do marido e a revolta diante da tragédia abrupta. A sequência em que quase come uma torta inteira é o ponto auge de sua performance, pois revela o turbilhão de sentimentos em seu interior somente pelo semblante e pelo modo como corta os pedaços do alimento.
O tema do luto é acompanhado diretamente pela questão existencial que recobre o personagem vivido por Casey Affleck. Durante sua jornada de convívio com a esposa, falecimento e retorno, a problemática do sentido da existência é trabalhada: qual seria o propósito de cada ser, o que daria significado à vida e até que ponto o relacionamento com outras pessoas define as trajetórias humanas. A narrativa, contudo, não deixa de demonstrar como há traços melancólicos numa ligação intensa entre aqueles que partiram e os que continuam vivendo: os diálogos entre dois fantasmas mostram como a espera pela pessoa amada e as tentativas de continuar a ela ligado não são eternas (a frase “eu nem sei mais quem estou esperando” é carregada de uma dor que atinge a todo o público); e o monólogo de Will Oldham indica como a existência, inevitavelmente, tem a sua finitude e os legados não são para sempre.
A discussão de temas dessa natureza leva a uma interação entre os personagens que têm seu próprio tempo. Um ritmo que se desenrola de maneira muito lenta e contemplativa, a partir da exibição do lado mais comum e corriqueiro que o cotidiano pode apresentar. A montagem feita pelo próprio diretor David Lowery privilegia os planos lentos e longuíssimos, transmitindo a sensação de que a vida, em sua grande maioria, não possui momentos espetaculares sucedidos numa dinâmica acelerada. Além disso, simboliza como o tempo é um elemento absolutamente diferente para o fantasma – ele avança em transições de cortes secos da câmera, em fade outs abruptos e em elipses carregadas de uma mise en scène reveladora das mudanças cronológicas.
O ritmo lento também se deve à direção de David Lowery, marcada por planos estáticos e sutis movimentos da câmera (travellings ou zoom-outs) ilustrativos da morosidade da vida comum, do sentimento de solidão predominante nos personagens e nas situações ou de algum evento importante para a narrativa (exibidos no mesmo ritmo comedido). Em sintonia com o trabalho do diretor está a composição dos planos feita pelo diretor de fotografia Andrew Droz Palermo. Através de uma razão de aspecto reduzida que remete a um vídeo caseiro, a narrativa pode fazer o espectador mergulhar na intimidade dos personagens como se assistisse a um registro feito pelo próprio casal.
Outro acerto do cineasta foi a escolha pela forma tradicional de caracterização do fantasma: um lençol branco com dois recortes na altura dos olhos. Além de criar uma figura simples que dialogue com a atmosfera de vida comum da produção, essa opção também facilita a identificação junto ao público (um tecido branco no qual é possível projetar, através da imaginação, qualquer imagem sobre ele; e dois olhos destacados que despertam simpatia, como se fossem de uma criatura saída de uma animação). Por trás do lençol, a atuação de Casey Affleck se mostra ainda mais desafiadora, tendo que enrijecer continuamente o corpo para retratar a inusitada condição em que se encontra e amolecê-lo quando está próximo de desaparecer definitivamente.
A meticulosa atenção aos aspectos técnicos se completa com o desenho sonoro do longa. O majoritário silêncio (reflexo da tristeza pela separação do casal) contrasta com as aparições repentinas de som (reflexo de como a vida segue seu curso nas risadas de crianças que passam a habitar a casa dos protagonistas e do revoar de pássaros ao redor); e a trilha sonora se baseia em notas graves angustiantes levadas ao limite para transmitir as dolorosas formas de solidão impostas aos personagens.
Ao fim de “Sombras da vida”, aspectos técnicos e temáticos se encontram e contribuem para uma experiência cinematográfica não usual. Um desafio ao público, habituado ou não, a narrativas lentas e extremamente densas na sua ambição pela complexidade da existência humana.
Um resultado de todos os filmes que já viu.