“O BANQUETE” – Microcosmo de um Brasil
A arte alimenta e se alimenta de seu contexto, constrói a sociedade na qual está inserida e é influenciada por ela. Um processo de trocas recíprocas que torna a manifestação artística fascinante, encantadora e socialmente relevante. Tamanho arrebatamento vem do mais recente trabalho da diretora Daniela Thomas, O BANQUETE, capaz de levantar críticas ácidas, mordazes e pulsantes sobre o cenário brasileiro contemporâneo (sua política e um recorte de uma parte de seus cidadãos).
A narrativa se passa no Brasil da década de 1980, período de instabilidade política apesar do retorno da democracia. Nesse contexto, um jantar, aparentemente apenas para a celebração de uma data festiva de aniversário de casamento, se transforma num palco de tensões políticas, ressentimentos sociais e traições entre os participantes do evento. O público é atirado naquele jantar sem conhecer as relações prévias entre os personagens, que claramente possuem mais informações sobre tudo que acontece (esse recurso de roteiro fortalece a tensão reinante e a possibilidade iminente de um conflito grave).
Inicialmente, a perspectiva é a de Ted (vivido por Chay Suede), funcionário contratado para servir a ocasião, que se torna testemunha das interações tragicômicas dos participantes: a anfitriã Nora; seu marido, o advogado Plínio; o casal comemorando dez anos de união formado por Mauro (editor da revista onde Nora trabalha) e pela atriz Beatriz; o colunista social Lucky e a crítica teatral Maria. Diversas conversas filosóficas sobre amor, sexo e comportamentos humanos são pontos de partida para a manifestação de ironias, insinuações, provocações, relações de poder entre homem e mulher e posturas passivo-agressivas – além de temer os possíveis rumos de tantas divergências, o público, ocasionalmente, pode rir de uma comédia de absurdos em torno de figuras patéticas e degradadas. É curiosa também a referência, no título do filme e em alguns diálogos, à obra escrita por Platão sobre o amor (uma ironia com o tom hostil e melancólica da narrativa).
A predominância de uma atmosfera hostil de mistério e incômodo é definida pela direção de Daniela Thomas. A opção por planos fechados nos rostos dos personagens coloca o público no interior dos seus estados de espírito e de seus conflitos – assim, não é possível um minuto sequer de alívio e tranquilidade. Entretanto, a estética dos enquadramentos funciona muito mais nas sequências filmadas ao redor da mesa (nas quais os cortes secos da diretora para cada personagem acentuam a tensão) do que nas primeiras sequências em outras partes da casa – visualmente, muitos planos desfocados fora da mesa de jantar não são agradáveis nem eficientes para situar o cenário.
Outro mérito de Daniela Thomas é sua direção de atores, afinal o filme se sustenta nas performances do elenco constantemente filmado em planos fechados e imerso numa dinâmica teatral. Drica Moraes, vivendo Nora, cria uma anfitriã dolorida pelas frustrações da vida que não se furta a destilar suas angústias e sadismos a quem acha merecedor; Caco Ciocler, vivendo Plínio, representa a degradação da figura humana e seus preconceitos incontrolados num estado de embriaguez; Rodrigo Bolzan, interpretando Mauro, compõe um sujeito passivo e impotente que sofre com a possibilidade de ser preso por ter escrito uma carta extremamente ofensiva ao presidente da República; Mariana Lima, vivendo Beatriz, combina paradoxalmente uma elegância artística com um temperamento agressivo e provocador; Fabiana Guglielmetti, interpretando Maria, sofre diretamente por ter tido um caso mal resolvido com Mauro e ser constantemente humilhada por isso; e Gustavo Machado, vivendo Lucky, se diverte com o sofrimento alheio tendo uma persona requintada e pseudointelectual.
A apreensão generalizada também é estabelecida pelo aspecto sonoro da produção. A trilha sonora idealizada por Antonio Pinto constrói o suspense a cada nova entrada de um convidado no jantar e do que ele pode trazer de conflito, através do uso de instrumentos de sopro e de corda angustiantes. Completa-se essa característica com o design de som concebido por Pedro Noizyman, que deixa audível cada fala mordaz dita sutilmente no fora de campo para indicar como a provocação pode vir de qualquer lado.
Além das próprias relações conflituosas e ressentidas entre os personagens, há também alguns comentários sobre a vida política brasileira de fins da década de 1980. Tendo como base a carta escrita por Mauro contra o presidente Collor, o filme aborda autoritarismos políticos (mesmo numa democracia) e corrupção para promover reflexões acerca do tempo presente do país – recuar o tempo fílmico para 1989 não é fortuito, já que é uma data que dialoga com a atualidade de escândalos de corrupção, questionamentos ao governo e descrédito do sistema partidário junto à sociedade (elementos também presentes nos anos imediatamente posteriores ao fim da ditadura militar).
Quando “O banquete” interliga os embates entre os personagens (em escala crescente de animosidade) e as referências políticas, suas qualidades se intensificam. A produção retrata indivíduos moralmente ambíguos, hipócritas e patéticos como símbolos de um futuro incerto para um país envolto em sérios problemas políticos e sociais – retrato, portanto, de sentimentos pessimistas e descrentes que afetam a população quando projetam as possibilidades de ação e mudança no Brasil. O polêmico desfecho com a frase de Nora (“Levante-se, Mauro. Que se você não for preso amanhã, teremos que salvar este país de merda”) ainda arremata com uma crítica ácida a uma elite política e intelectual questionável. Em suma, uma demonstração da beleza da arte, estética e socialmente.
Um resultado de todos os filmes que já viu.