“A RAPOSA MÁ” – As surpresas de uma boa animação
À primeira vista, A RAPOSA MÁ parece ser uma animação voltada somente para o público infantil. Ledo engano. O design dos personagens e dos cenários pode aparentar algo pueril e imaturo, porém ultrapassa qualquer leitura apressada e superficial e atinge diferentes espectadores de diferentes idades. O tom geral do filme realmente é divertido, simples e de fácil comunicação com as crianças, contudo isso não significa abandonar os mais velhos – inclusive, algumas piadas funcionam muito mais com os pais do que com os filhos.
Adaptação da graphic novel francesa de mesmo nome, a produção é dividida em três pequenas histórias passadas numa fazenda habitada por várias espécies animais. Um porco, um coelho e um pato precisam levar um bebê até seus pais, quando a cegonha responsável sofre um acidente; os mesmos animais precisam salvar o Natal, quando o Papai Noel real, a princípio, parece estar impossibilitado; e uma raposa tenta criar para si uma imagem de criatura má, quando busca atacar a fazenda atrás de alimento. Por estruturar sua narrativa em torno do mesmo local (a fazenda), a animação constrói seu próprio universo em que todos os personagens interagem entre si e possuem trajetórias complementares. Nesse sentido, as dinâmicas entre eles geram situações engraçadas por se tratarem de animais colocados em momentos e em desafios típicos dos seres humanos.
É justamente quando os personagens são inseridos em circunstâncias incomuns para sua realidade que o humor é criado: um porco, um pato e um coelho obrigados a se comportar ou realizar ações compatíveis à rotina dos humanos (dirigir um automóvel, pilotar um avião ou despachar uma encomenda pelo correio); esses mesmos animais preocupados em preservar intocada a mística do Natal; e uma raposa colocada na situação de galinha tendo que cuidar de pintinhos e abrindo espaço para abordar, mesmo que rapidamente, as distintas composições familiares contemporâneas. As piadas, portanto, nascem do absurdo trabalhado para potencializar o estranhamento diante de sequências que fogem de um possível realismo.
A condução das três histórias pelos diretores Benjamin Renner e Patrick Imbert não é muito chamativa em termos de enquadramento e movimentação. Trata-se de um trabalho de direção discreto que se faz mais presente quando um corte abrupto de uma sequência para outra produz humor. O interesse maior dos cineastas é valorizar o roteiro que eles têm em mãos. A intervenção da dupla pode ser sentida também pelo recurso da quebra da quarta parede empregado na introdução do filme e de cada uma das três histórias: tomando a narrativa como um espetáculo teatral, os personagens falam diretamente com o público para apresentar o que se vê em tela – algo que, por mais que não seja indispensável, acrescenta doses extra de humor bem-vindas.
Os dois cineastas, com o auxílio da diretora de elenco Céline Ronte, imprimem um estilo próprio ao filme através do traço escolhido para os efeitos visuais. A técnica de animação de “A raposa má” se diferencia do stop motion e da computação gráfica por investir em desenhos feitos a mão. Uma opção assim remonta à estética das histórias em quadrinho tradicionais e aos famosos desenhos do “Looney Tunes“. Essa estética é utilizada com eficiência para dar expressividade aos personagens e destacar suas características emocionais e comportamentais: um animal doce e simpático é retratado com olhos grandes e de fisionomia agradável, enquanto outro carrancudo e perigoso é retratado com olhos menores e de expressão fechada e antipática. Pode haver um choque inicial diante de uma animação concebida com técnicas distintas daquelas mais usuais, porém ela revela sua função narrativa graças aos seus personagens.
Quando analisamos detidamente o desenvolvimento das três histórias, algumas oscilações de ritmo e de eficiência nas piadas aparecem. A primeira delas, focada na proteção a um bebê, apresenta uma regularidade maior e um crescimento gradual do tom cômico e das dificuldades percorridas pelos personagens. As demais apresentam e concluem os conflitos de maneira bem sucedida, todavia possuem em seus pequenos “segundos atos” obstáculos para manter a atenção, já que nem sempre o humor funciona. Ainda que existam problemas, o carisma dos personagens ajuda a estabelecer vínculos de identificação capazes de fazer o público se interessar por eles.
“A raposa má” é cativante logo em seus primeiros minutos e consciente de que estender a narrativa por mais tempo seria uma autossabotagem. O filme funciona por ser autocontido sem buscar algo que seria incapaz de alcançar. Um bom senso que justifica como as boas animações podem atingir diferentes públicos.
Filme assistido no Festival Varilux de Cinema Francês.
Um resultado de todos os filmes que já viu.