“PECADORES” – O caos e o blues, o racismo e o pecado
Há uma multiplicidade de maneiras pelas quais é possível interpretar PECADORES. Em uma primeira camada, trata-se de um filme sobre o racismo histórico, algo explícito a partir das referências dramáticas. De maneira mais profunda, a partir do seu viés fantástico e da relação pecador-pecado, a obra aborda um racismo simbólico sem deixar de lado o entretenimento.
Fumaça e Fuligem são dois irmãos gêmeos que retornam de Chicago para a sua terra natal, no Mississippi, para recomeçar as suas vidas. Com o dinheiro que conseguiram, decidem abrir um clube noturno de blues, onde as pessoas negras da cidade podem encontrar diversão. Porém, uma ameaça sombria chega na região, colocando tudo e todos em grande risco.

O primeiro elemento do filme escrito e dirigido por Ryan Coogler que chama a atenção não está propriamente no enredo ou na ideia governante, mas no design de som. Praticamente uma personagem autônoma, o blues marca constante presença, quase incessante – ao menos até o filme enveredar pelo fantástico -, sendo por vezes caótico quando a mixagem de som adiciona ruídos intra e extradiegéticos. Com devoção às origens do blues, chamam a atenção duas cenas: uma de referência às canções de trabalho afro-estadunidenses; outra, completamente anárquica, em que o início de puro blues viaja temporal e espacialmente para e por diversas tradições sonoras e de dança (a percussão africana, o rap, os ritmos asiáticos, o eletrônico etc.).
No aspecto sonoro, portanto, o filme traz muita intensidade e beira o cansativo, mas isso tem dois propósitos. O primeiro é a contraposição entre o blues e o country, representado pelo vilão da história. Há um abismo entre o que é cantado por Sammy (Miles Caton, com uma voz grave impressionante) e a apresentação do trio liderado por Remmick (Jack O’Connell), o que não é uma mera diferenciação de gêneros musicais, mas um distanciamento entre negros e brancos a partir desses gêneros e suas raízes históricas. Curiosamente, a música dos brancos é tranquila e aparentemente inofensiva (embora a letra possa ter um significado obscuro), o oposto da música dos negros, muito mais vigorosa e com a letra eventualmente falando sobre atitudes pecaminosas.
O segundo propósito é narrativo: “Pecadores” não se limita a um gênero cinematográfico, transitando, principalmente, entre o drama, o suspense, o horror fantástico, a ação e a comédia, de modo relativamente desgovernado (o que justifica o som babélico). A performance de Michael B. Jordan em dois papéis é muito boa nesse trânsito, conseguindo carregar o drama das personagens, em especial nas suas relações afetivas com as personagens de Wunmi Mosaku e Hailee Steinfeld, também excelentes. Esta possui um backstory trágico e uma aproximação natural à comunidade negra; aquela também tem uma história pregressa trágica, mas é mais importante na parte do horror fantástico e transmite uma aura sábia que ganha o reconhecimento de todos. No humor, destacam-se Delroy Lindo e Omar Benson Miller, embora não sejam essenciais na narrativa. De todo modo, há um sufocante clima de suspense que paira na trama, que se torna ainda mais emocionante com o ritmo enérgico do design de som. Coogler não faz muito mistério sobre o que há de fantástico na narrativa; o mistério existe em relação ao modo como tudo vai se suceder.
A história se passa no Mississippi, estado de forte agropecuária e ainda mais forte segregação racial. O aspecto bucólico serve, no design de produção, para estabelecer o contexto e enfatizar o quanto os irmãos, com seu figurino elegante, destoam dos demais. Além disso, chama a atenção que apenas negros trabalham na lavoura. O fato histórico da segregação racial também tem finalidade de contextualização, seja nos diálogos, seja na ameaça implícita da Ku Klux Klan. Tudo isso, atrelado ao real, se volta ao tema do filme, o racismo, de uma maneira já vista em inúmeras outras obras, como “A cor púrpura”, “12 anos de escravidão” e “Um limite entre nós”. Para fazer diferente, com louvável ousadia e de maneira disruptiva, à la “Um drink no inferno”, Coogler faz um filme de horror fantástico no qual elabora um retrato metafórico de como os brancos historicamente se aproveitaram e se apropriaram dos corpos, do labor, do suor e sobretudo do sangue dos negros, por vezes alienando e aliciando os brancos não racistas e os próprios negros.
Por fim, há uma denúncia de como o discurso religioso, simbolicamente, molda uma estrutura que impõe dominação e separa os pecadores dos não-pecadores. A diversão do clube de blues é associada ao pecado de maneira tal que não existe salvação, sendo que o mais inocente é também o mais visado porque, ao final, são todos (negros e, portanto,) pecadores, sem distinção (os chineses, inclusive, entram na mesma vala comum). A música (blues) é uma via pecaminosa, pois associada ao álcool, ao sexo e às obscenidades, o que é censurado pelas instituições (a Igreja), pelo preconceito real e alegórico (os racistas realistas e os fantásticos) e pelos próprios agentes do pecado (Fumaça, ao querer que Sammie mude de vida). Cabe ao sujeito encontrar (ou não) a sua salvação: salvar-se do pecado, da dominação e do racismo.
Em tempo: o filme tem duas cenas pós-créditos.


Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.