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“NAS TERRAS PERDIDAS” – Identidade hiperestilizada

No cinema contemporâneo, a fantasia lúdica e imaginativa em termos visuais não está nos seus melhores momentos. Desde o fenômeno “Batman: O cavaleiro das Trevas” de Christopher Nolan, a tendência do realismo triunfou na necessidade de explicações lógicas do universo diegético e de uma encenação sombria com cores frias. A fórmula estéril da Marvel Studios reforçou essas características sem explorar as potencialidades criativas de narrativas fantásticas. Alguns nomes atuais, entretanto, esforçam-se para manter viva a fantasia e trabalhar a linguagem cinematográfica de modo criativo, como M. Night Shyamalan e Paul W.S. Anderson. É o caso de NAS TERRAS PERDIDAS, uma obra que não pode ser acusada de falta de identidade autoral.

(© Diamond/ Divulgação)

Baseado em três histórias literárias escritas por George R.R. Martin, o filme mostra que rainha Melange contrata os serviços de uma temida feiticeira chamada Gray Alys. A intenção é obter um poder mágico capaz de alterar a forma física das pessoas e dos objetos. A missão faz com que a bruxa se junte ao caçador Boyce para lutar contra forças sombrias e inimigos monstruosos na jornada pelas amaldiçoadas Terras Perdidas. O maior problema está no fato de que cada desejo que Gray Alys precisa atender gera consequências devastadoras.

O diretor Paul W.S. Anderson não parece tão preocupado a princípio com o conteúdo a ser desenvolvido. O universo mitológico é dado pela narração de abertura sem muita atenção aos detalhes: alguma guerra ocorreu, o planeta foi devastado, a humanidade se refugiou em uma área específica, criaturas fantásticas coexistem nas temidas Terras Perdidas e uma disputa pelo poder está em curso entre os governantes reais, uma força militar e a Igreja. À medida que a narrativa progride, a diegese criada pelos livros não refina os conflitos em questão e os eventos são abordados sob a chave da cafonice e da farsa. A busca por um metamorfo, a relação cada vez mais próxima entre Gray Alys e Boyce e os bastidores do poder marcados por conspirações e alianças secretas deixam mais pontas soltas do que certezas em relação às origens e desdobramentos daquele mundo fictício.

A mesma sensação se manifesta na dinâmica entre os personagens principais. Gray Alys e Boyce, cada um à sua maneira, lidam com a solidão e a falta de conexão com o universo no qual habitam. Ela é uma bruxa perseguida por heresia, ele é um caçador de aluguel desprovido de relações duradouras em função da natureza de sua atividade. O encontro e a jornada partilhada por ambos em direção às Terras Perdidas poderiam fazer o conflito dramático se intensificar, porém os diálogos sobre seus sentimentos não evoluem para nada muito tangível. Uma análise apressada faria pensar que existe um problema de roteiro, pois a temática da solidão é inserida e abandonada sem maiores aprofundamentos. Se a reflexão deixar de lado a lógica racional e os modelos tradicionais de contação de histórias, a “fragilidade” ou a “ausência” de desenvolvimento temático encontra uma razão de ser. Como Dave Bautista e Mila Jovovich não são conhecidos por uma larga amplitude dramática, as atuações de ambos reafirmam que os dois arcos se baseiam na ideia de farsa, no artificialismo das emoções apresentadas.

Em paralelo, o cineasta cria outros níveis de artificialidade que ultrapassam a dimensão da trama pura e simples. Ele combina efeitos visuais digitalizados para os cenários e uma iluminação estourada para os personagens ou para a ação. Como resultado, a estética escolhida abraça o caráter farsesco de uma fantasia que jamais tenta parecer realista ou profunda. Na verdade, existe até uma ironia na maneira como os atores são dispostos em espaços visualmente irrealistas e as figuras mitológicas são iluminadas como parte de um mundo apartado de qualquer traço próximo de nossa realidade. As experimentações estilísticas remetem a “Megalópolis“, “300” e “Sin City – A cidade do pecado“, já que a escuridão da noite ou de áreas ameaçadoras é contrastada com intensas luzes douradas ou azuladas do céu. As cenas diurnas seguem o mesmo princípio de colocar em choque filtros discrepantes que chamam a atenção para a intervenção do digital da pós-produção e da estilização da fotografia saturada. Além da composição dos quadros, essas decisões formais impactam outros elementos da cenografia.

Como a obra se filia como uma fantasia povoada de seres fantásticos com habilidades mágicas e uma mitologia própria, as sequências de ação incorporam a hiperestilização dos ambientes. Conhecido pelas radicalizações feitas na franquia “Resident Evil“, que, em muitos momentos, adquire uma natureza de videogame, Paul W.S. Anderson faz algo similar aqui. Os confrontos nos quais Gray Alys e Boyce se envolvem podem lembrar as fases de um videogame ou as set pieces de um videoclipe, tamanha é a força sensorial de sequências que apelam para os estímulos visuais e para a reação imediata do público frente às imagens. Em outros instantes, a adrenalina dos embates contra os guardas da Igreja e as criaturas fantásticas cede lugar para a contemplação das locações estilizadas pela computação gráfica. É certo que nem todas as cenas de ação funcionam bem, pois muitas delas parecem ser regidas pela necessidade burocrática de mover a trama ou colocar empecilhos para a concretização da missão ao invés de brincar com as noções de farsa fantasiosa ou com a encenação digitalizada.

É curioso também observar a cada minuto que se passa o jogo de sensações conflitantes que “Nas terras perdidas” pode desencadear. Há uma percepção natural de cafonice espalhafatosa ou de canastrice intencional transformada continuamente em uma impressão de mosaico com peças desencontradas e em curiosidade quanto às reações a serem provocadas em uma audiência maior. Tudo isso pode, inclusive, se tornar uma experiência agradável em algum nível se a lógica cartesiana do bom cinema for deixada de lado, a busca por explicações racionais de todos os detalhes for esquecida e a espontaneidade de uma identidade autoral favorável aos riscos for reconhecida. Alguns riscos podem produzir consequências danosas, como a necessidade de amarrar as pontas soltas no fim para dar certo sentido à trama. Um esforço que parece vir da sequência de reviravoltas e respostas “surpreendentes” para questões jamais pedidas pelos espectadores, ou seja, de uma vinculação consciente com o material original. Ainda assim, quando o filme se permite se liberar de amarras e desconstruir os espaços, a ação, a trama e até a composição das imagens, efeitos muito interessantes surgem em tela. Cada um deles remete a um exemplar que não se limita a fazer o mais do mesmo do cinema contemporâneo. E isso é um mérito.