“VITÓRIA” – Não é um filme qualquer
Histórias reais costumam gerar curiosidade no público e, não raras vezes, levam à perplexidade diante do quão improvável é o que retratam. VITÓRIA é capaz de causar esses efeitos, contudo, o que há no filme que mais impressiona é a vitalidade da atriz que interpreta a personagem principal. Sem ela, seria um filme qualquer.
Indignada com a criminalidade que vê da sua janela, a octogenária Josefina – que prefere ser chamada de Nina – recorre à polícia para viver com mais segurança. Não obtendo êxito, ela assume o risco de gravar os atos criminosos para, assim, respaldar a sua demanda junto às autoridades.

A direção de Andrucha Waddington não se afasta da referência inevitável para o que propõe, o clássico “Janela indiscreta”. Embora o que mova Nina não seja o mesmo que Jeffries, existem duas semelhanças que os aproximam. A primeira e mais óbvia é o fato de gravarem os vizinhos a partir de suas janelas, e, mais do que isso, com um interesse específico em (supostas, no caso dele) práticas delitivas. Diferentemente de Nina, Jeffries inicia a sua empreitada a título de entretenimento pessoal, o que torna a dela muito mais desafiadora. A segunda semelhança está no modo de filmar o ato de observar (e registrar) os vizinhos observados.
Nesse sentido, Waddington segue as lições de Hitchcock ao aproveitar bem a câmera subjetiva e suas possibilidades, como o uso de zoom e a tremulação da imagem (o que é natural, já que a câmera está nas mãos de uma idosa assustada), além de variar os ângulos de filmagem. Isto é, o que é visto não é apenas o ponto de vista da protagonista pelas lentes de sua câmera, mas também planos filmados atrás dela e outros em sua frente, situando o espectador naquele importante espaço do apartamento. No caso do filme de Hitchcock, porém, a janela funciona quase como uma personagem, ao passo que, em “Vitória”, ela representa um elo com a motivação da heroína, que é desmantelar o tráfico de entorpecentes da região. Também de maneira simbólica, o diretor coloca nas mãos da protagonista uma xícara de porcelana, que serve como alegoria para a sua jornada de solução de um problema.
O design de produção do longa é muito bom ao expor tanto a época (a televisão de tubo, a câmera de mão etc.) quanto as condições socioeconômicas de Nina (o tamanho diminuto do apartamento, o ventilador barulhento etc.). Da mesma forma, o design de som funciona bem para estimular a imersão do espectador, seja pelos ruídos típicos da atividade criminosa que ronda o lar de Nina (tiros, gritos, sirene, helicóptero…), seja pela música de fundo abafada (geralmente funk e pagode). Por outro lado, a obra tem problemas de montagem, soando lacunosa. Com saltos causais ou narrativos sem muita explicação, parece que o corte final deixa de usar algumas cenas, capazes de desenvolver melhor a trama e que poderiam ser reaproveitadas em outra produção, como uma série (cabe lembrar que, no audiovisual brasileiro, não é raro que isso aconteça). Das duas, uma: ou essas cenas de fato existem e realmente serão aproveitadas em uma série, ou há um erro ainda mais grave na montagem.
Tematicamente, “Vitória” não tem uma visão simplista da criminalidade e da violência urbana. Isso porque a rotina da protagonista, consistente em se assustar e se proteger para não ser acertada por um projétil, não elide a sua própria visão de que esse problema tem mais vítimas do que parece. Diferentemente de outros condôminos, que aceitam a impotência diante da situação, Nina percebe que os mais frágeis são vítimas, muitas vezes absorvidas pela criminalidade, seja por destruição, seja por retroalimentação. Outro tema abordado, com menor profundidade, é o etarismo, demonstrado no cotidiano de Nina (o funcionário do mercado, o motorista que buzina…), mas também no seu próprio enfrentamento à violência urbana (como quando o Major diz que pode estar confundindo tiros com fogos).
Para o papel principal, ninguém melhor do que Fernanda Montenegro, que incorpora uma mineira (e o sotaque é perceptível, sem ser caricato) tão teimosa e persistente quanto maternal. Sua relação com Flávio (Alan Rocha, em ótima interpretação) é exemplo disso: enquanto insiste em assumir os riscos, não se furta de protegê-lo, em seu apartamento, de possíveis tiros (quando o coloca embaixo de si). Enquanto Montenegro é uma força que eleva o filme a um patamar maior, outras atuações deixam muito a desejar, em especial de Linn da Quebrada (que beira o risível em uma cena que exigia a tensão). Aos noventa e cinco anos, a atriz que vive a protagonista é um modelo de dedicação ao ofício que se ama. Tal qual a verdadeira idosa da história, é uma lição de vida que justifica o mediano “Vitória”.


Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.