“MARVIN” [FVCF/2018] – Urgente, palpável e humano
A força de MARVIN reside na coragem de abordar um tema complexo e que ainda é tabu mesmo em países ocidentais, bem como nas atuações. O filme é uma adaptação do romance autobiográfico “En finir avec Eddy Bellegueule” (em tradução livre, “Para acabar com Eddy Bellegueule”), de autoria de Edward Louis. Assim, baseado em uma história real, o longa retrata a infância e a adolescência de um rapaz atormentado pela homofobia sofrida pelas pessoas que o cercam – em especial sua família e os colegas da escola.
Abordar a homossexualidade na pré-adolescência é um desafio considerável ao exigir delicadeza, principalmente quando o viés é realista. Entretanto, para aumentar o risco, a diretora Anne Fontaine não poupa o espectador de cenas ousadas, sem deixar de lado momentos sensíveis, como ao aliar câmera subjetiva a planos-detalhes no corpo de rapazes – quando Marvin admira os corpos dos meninos mais velhos na natação (cena que se repete, pois o corpo masculino, nu ou seminu, é bem presente na película). No primeiro caso, há momentos que podem ser chocantes para alguns; no segundo, a exibição é artística e com finalidade narrativa. Se fosse brasileiro, o longa sofreria represálias inimagináveis, pois aqui os pré-adolescentes não podem sequer aprender a respeitar a homossexualidade.
Afirmar que Marvin sofreu bullying talvez fosse reducionista: ele era humilhado por meninos mais velhos, cujo escárnio dirigido a ele é chocante. Por outro lado, enquanto pré-adolescente, ele ainda é dotado de uma ingenuidade cuja candura é comovente. Quando ele lê uma ofensa radical pichada em um muro, o que faz é perguntar ao pai o significado, pois realmente não entende. Há então o encaixe com uma família ignorante e homofóbica (evidentemente, o contexto em que os familiares são inseridos explicaria seu raciocínio, mas não pode justificá-lo – e é essa a lógica da película).
Os pais de Marvin são pessoas de pouco estudo e muita grosseria: a realidade que ele conhece é de um irmão mais velho agressivo, uma mãe nada carinhosa e um pai rude (para dizer o mínimo). Em narração voice over, ele explica que a mãe não fazia ideia do que ele sofria na escola (era excluído, quando não reprimido), o que o motivava a fingir estar doente para faltar – mencionando também que o pai afirmava não ter dinheiro para gastar em gasolina e buscá-lo no curso de teatro, porém a falta de dinheiro não era problema para comprar bebida e cigarro.
Tudo isso se faz presente em um roteiro que não é cronologicamente linear, mas que não é difícil de se fazer compreender: o protagonista encontra na arte (atuação e literatura) a chave para a sua felicidade e, principalmente, para uma nova vida. Aliás, uma vida na qual ele abandona o próprio nome (é um nome vexatório, assim como a própria identidade abandonada), tornando-se Martin. Talvez a nova identidade já existisse quando era pré-adolescente: fora do palco, o pequeno Marvin era introspectivo e tímido; no palco, ele ganha brilho nos olhos (é onde sai seu primeiro sorriso). Jules Porier é excelente ao interpretar essa fase do protagonista, encontrando a melancolia antes das artes e a alegria depois delas. Já Martin é uma nova persona habitando um corpo um pouco mais velho, tendo coragem para ser quem é (e como é), bem como para enfrentar a família (como na tocante conversa com a irmã). A dicotomia vivacidade no palco versus timidez fora é captada muito bem por Finnegan Oldfield, que está bem diferente dos papéis interpretados em “Os cowboys”, “Coração e alma” e “A vida de uma mulher”. Dessa vez, sua expressividade minimalista combina com Martin.
Ao redor de Marvin/Martin giram personagens sem grande aprofundamento. Seu pai Dany (vivido por um ótimo Grégory Gadebois) é o estereótipo do interiorano preconceituoso e ignorante, que afirma que “negros e marroquinos não prestam” e que acha que homossexualidade é sinônimo de psicopatologia. Catherine Mouchet interpreta uma superficial Mme. Clément, a nova diretora. Embora ela pareça linha-dura em sua apresentação, ela acaba sendo uma madrinha para Marvin, fazendo toda a diferença na sua vida e nutrindo por ele algum carinho. Vincent Macaigne vive Abel, um mentor intelectual do protagonista cujo arco dramático pessoal é mencionado en passant, mas nunca aprofundado. Charles Berling vai bem no papel de Roland (melhor que na boa série “Glacé”, por exemplo), porém a relação entre os dois se resume a uma não muito afável objetificação de Martin. Mais velho e muito mais rico, Roland “compra” o rapaz que o encanta por não se entregar com facilidade. Nesse meio, entra Isabelle Huppert, estrela que faz o que muitos conhecem como “ponta”, atuando como ela mesma.
Anne Fontaine não é a melhor das diretoras, com enquadramentos ruins e uma mise en scène geograficamente confusa (como na sequência da balada). A cena em que Marvin fica de frente para o trem, por exemplo, não alcança uma fração do seu potencial em razão da mudança para um quadro lateral, enquanto o frontal era muito mais tenso. Fontaine faz de “Marvin” um filme cujo maior valor está no retrato real de uma história banal: um jovem que se descobre socialmente deslocado em razão da sua homossexualidade. É um tema urgente, palpável, humano e que pode ser inspirador para quem se identifica. E o tema não é a homossexualidade: é o respeito.
Filme visto no Festival Varilux de Cinema Francês 2018.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.