“O REFORMATÓRIO NICKEL” – Dispositivo subjetivo racializado
A Escola para Meninos Arthur G. Dozier, na Flórida, era um internato para jovens com histórico de abusos, torturas e espancamentos que funcionou entre 1900 e 2011. Inspirando-se nos eventos em torno dessa instituição, Colson Whitehead escreveu o livro que serve de base para O REFORMATÓRIO NICKEL. De imediato, duas possibilidades podem vir à tona quando se pensa em adaptação cinematográfica: buscar certa fidelidade ao material original ou priorizar a reconstituição fidedigna de uma história real. No filme em questão, a narrativa não se limita a nenhuma das duas porque está interessada em explorar as potencialidades do cinema a partir de um dispositivo que se reinventa de formas expressivas.

Dois adolescentes negros são enviados para um reformatório juvenil brutal no interior da Flórida, ao mesmo tempo em que as leis segregacionistas estão no auge na década de 1960. Elwood e Turner se conhecem e desenvolvem uma forte amizade, apesar das diferenças entre os dois. O vínculo forja um refúgio de esperança e carinho em meio aos horrores dentro e fora da instituição. No contexto exterior, os EUA são marcados pela corrida espacial contra a URSS durante a Guerra Fria e pelo Movimento dos Direitos Civis encabeçado por Martin Luther King e Malcolm X.
Fazer do projeto um discurso político didático sobre o racismo institucional ou enfatizar o caráter de adaptação criam o risco de tornar o conteúdo mais importante do que a forma. Nesse sentido, o diretor RaMell Ross estabelece uma harmonia fina entre o que se conta e como se conta ao definir a câmera subjetiva como o dispositivo que conforma a narrativa. Boa parte dos eventos são encenados a partir da perspectiva de Elwood, deixando o enquadramento da câmera na visão do protagonista. Sendo assim, o espectador custa a poder enxergar o corpo do jovem, saber como ele é e até ouvir sua voz. Da infância em diante, a apresentação integral dele é gradual e, muitas vezes, rápidas aparições do ator Ethan Herisse podem ser observadas através de superfícies reflexivas. O recurso sugere também um reconhecimento lento de Elwood sobre o mundo e si mesmo, permitindo descobertas poéticas do entorno, percepções críticas da discriminação racial do período e uma consciência de si pela identidade racial.
Quando a encenação direcionada para o ponto de vista do personagem corre o risco de se desgastar, RaMell Moss reconfigura a escolha formal da subjetividade. No internato, Elwood conhece Turner e as mudanças também se apresentam como um sintoma de rejuvenescimento. Algumas sequências passam a ser vistas pela visão subjetiva do outro adolescente vivido por Brandon Wilson, o que afeta na percepção do universo diegético em direção a uma postura menos sonhadora ou esperançosa. Por exemplo, o encontro entre ele e Hattie, a avó de Elwood (interpretada por Aunjanue Ellis-Taylor), na visita impedida da senhora ao neto realça a emoção da atriz em uma situação de insatisfação com a injustiça. Além disso, as interações entre os dois jovens são construídas com planos que se alternam entre as perspectivas de ambos como se a câmera e o próprio público participassem do diálogo. Outra alternância é criada entre os núcleos do reformatório e de um futuro indefinido em que um dos adolescentes reúne materiais para denunciar a instituição, retratando as cenas cronologicamente mais recentes através do posicionamento da câmera nas costas do personagem.
O dispositivo narrativo poderia ser acusado de ser simplesmente um floreio desnecessário que chamaria a atenção para as habilidades técnicas do realizador. Contudo, ele jamais deixa de integrar à dramaturgia, seja na dimensão histórica da trama, seja na relação afetiva entre Elwood e Turner. Os jovens criam uma amizade que passa pelo apoio mútuo necessário para sobreviver a um cenário hostil e brutal, baseado no racismo e na violência física das autoridades. Turner demonstra, por exemplo, tanto apreço pelo amigo que o retira das tarefas mais perigosas, alerta para as punições mais severas que poderia sofrer em certas ocasiões e o conforta no momento em que está sob os cuidados de um médico após ser covardemente agredido por um dos diretores. O vínculo não exclui a existência de divergências entre eles, já que têm posturas distintas em relação à luta pela recuperação da liberdade. Elwood tem esperança de que a avó e o advogado contratado podem provar a inocência diante da acusação feita, o que denota a aceitação de que a luta contra o racismo deve ser coletiva. Já Turner é cético sobre esperar a ajuda alheia em meio a um sistema tão opressor, por isso acredita apenas na possibilidade de fuga individual.
Enquanto a relação afetiva entre os personagens se desenvolve, o reformatório se torna um microcosmo para as desigualdades sociais e raciais, a violência sistêmica e as opressões capitalistas da sociedade estadunidense nos anos 1960. As hierarquias são vistas na separação de jovens brancos e negros no local em condições opostas, no discurso perversamente meritocrático da obediência irrestrita para conseguir recuperar a liberdade, nos castigos físicos sobre quem desobedece às rígidas regras e na tortura realizada em certo espaço mais alto da instituição. Antes de levar a trama para seu principal cenário, o roteiro apresenta a truculência policial contra pessoas negras e a encenação utiliza o reflexo de uma loja de TVs para mencionar as mobilizações de Martin Luther King. A subjetividade impregnada pelo ponto de vista dos personagens também complexifica o processo de identificação do público, estabelecendo uma vinculação direta com os espectadores negros e marcando a diferença com espectadores brancos que jamais conseguiriam sentir exatamente as violências exibidas.
Por sinal, a representação das ações violentas tem o cuidado de não inverter a tentativa de crítica em construções apelativas, banalizadas ou desagradáveis sensorialmente. Ao invés de encená-las com uma abordagem frontal, o cineasta trabalha com simbolismos sem esvaziar seus sentidos políticos. Na cena em que Elwood e outros adolescentes são agredidos, a câmera não mostra todos os eventos diretamente. Ao invés disso, o caminho escolhido é o da experimentação visual de mostrar vários rostos negros distorcidos visualmente ou em registros de baixa qualidade para causar o incômodo pedido pelo momento. Mais adiante, a narrativa encadeia pela montagem os perigos na sequência final no reformatório com arquivos de época de imagens do enterro de Martin Luther King e da operação Apollo 8 para o voo para a Lua. Nesse segundo caso, o paralelo construído explora as ironias de comparar a dimensão mais alta do espaço, alcançada pelos avanços tecnológicos, e do reformatório, criada como instrumento de tortura e critica o uso político da missão espacial como véu para encobrir as crueldades cometidas contra a população negra.
“O reformatório Nickel” segue reinventando os efeitos do dispositivo subjetivo até atingir o segmento no futuro que acompanha um dos personagens mais velho. Se antes a perspectiva subjetiva direcionava o olhar da câmera e do público para uma leitura pessoal dos acontecimentos, os últimos minutos do filme posicionam o equipamento nas costas do homem e reconfiguram as imagens para uma dimensão metafísica e memorialística. Para além da reviravolta que se pode observar em relação ao destino dos dois adolescentes, o passado e a amizade passam a ser representados como uma memória saudosa do que não pode mais ser resgatado, como um lirismo que fortalece os laços afetuosos diante de um cenário brutal. Então, o conteúdo político e a experimentação estética não são nem acessórios apelativos para a satisfação do ego de um artista nem uma bandeira ideológica imposta a uma linguagem artística empobrecida. A mensagem que aborda e a forma como a trabalha encontram a complexidade e a delicadeza para temas e situações sensíveis.
