“UM COMPLETO DESCONHECIDO” – A fama, a música e o músico
Em “Não estou lá”, Todd Haynes elabora uma cinebiografia heterodoxa, na qual o biografado, Bob Dylan, é vivido por uma atriz e cinco atores diferentes, cada qual em uma fase distinta do cantor em sua carreira, com um roteiro nada tradicional. Nesse sentido, UM COMPLETO DESCONHECIDO, de James Mangold, é uma cinebiografia muito mais ortodoxa, fazendo um recorte da vida e da carreira de Dylan, entre 1961 e 1965. Diversamente de Haynes, o interesse de Mangold está no que catapultou Dylan ao estrelato, quiçá o momento mais relevante da sua carreira.
Em 1961, Bob Dylan chega a Nova Iorque aos dezenove anos como um desconhecido munido de seu violão, de composições próprias e da vontade de conhecer seus ídolos musicais e, quem sabe, cantar como eles. O universo da música folk, porém, se revela muito mais engessado do que ele gostaria que fosse.
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James Mangold elabora uma obra bastante preocupada com a composição da época que moldou o “primeiro” Bob Dylan. Para além dos figurinos, há diversas citações, em especial do noticiário, aos eventos que borbulhavam e faziam História (em especial, é claro, nos EUA), como o movimento dos direitos civis, a Guerra do Vietnã e a corrida nuclear. Essa preocupação não é gratuita, uma vez que esse borbulhar exerceu influência em Dylan, como em seu terceiro álbum, “The times they are a-changin’”, que reflete temas como racismo e mudanças sociais. É também com base nisso que Mangold articula a canção homônima com a trama, o que é feito, igualmente, com a cena em que o protagonista canta, junto de Joan Baez, “It ain’t me babe”. Nessa cena, paira uma polissemia quanto ao direcionamento, uma vez que os dois cantores parecem se dirigir um ao outro, mas uma terceira personagem se identifica com a canção, o que a afeta profundamente.
O diretor constrói cenas bastante poderosas, com destaque, como não poderia deixar de ser, para aquela em que Dylan canta “Blowin’ in the wind”, provavelmente a sua canção mais famosa. O protagonista acaba de acordar e ainda se encontra em uma situação relativamente desconfortável com Joan Baez, mas o poder da música contagia o ambiente, dissipa a tensão e faz com que a própria Baez se sinta atraída por ela. Aqui, o trabalho de Monica Barbaro no papel tem o seu ápice, pois a atriz transmite o sentimento da cantora segundo o qual essa música, com sua força magnética, é uma entidade que toma o seu ser (e, claramente, sua dedicação é voltada ao universo do folk). Até determinado momento, Baez funciona como uma das inspirações de Dylan, assim como Woody (Scoot McNairy) e Pete (Edward Norton). Porém, a devoção do artista é muito maior em relação a Woody, provavelmente por sua condição clínica, no que ele demonstra empatia.
Quanto a Pete, a despeito do convincente trabalho de Norton, o roteiro de Mangold e Jay Cocks, baseado no livro de Elijah Wald, recai em uma inconsistência considerável: enquanto que, em uma reunião, ele pede para que os empresários sejam menos dogmáticos do ponto de vista musical, adiante, ele mesmo se revela dogmático e interessado não no que Dylan quer produzir artisticamente, mas no que o público quer consumir. Isto é: quando e por que Pete deixou a arte em segundo plano? Seria somente pela solitária cena do canal familiar, contradizendo todas as outras? Algo similar ocorre com Albert (Dan Fogler), que estranhamente deixa de ser o empresário ganancioso, sem maiores explicações.
Não obstante, o que é central é o biografado e, quanto a isso, a interpretação de Timothée Chalamet é fenomenal. Para além da criação de uma persona aparentemente avoada e mais apegada ao seu cigarro e ao seu violão do que ao que ocorre à sua volta, o ator se prende a minúcias que revelam esmero ímpar na atuação, como as particularidades do canto de Dylan e, sobretudo, a mudança no olhar, que traduz o encaminhamento dado pelo roteiro. No início, seu olhar é apreensivo (quando canta para Woody pela primeira vez, o contato visual demora a ocorrer); a partir do ponto de virada, isso muda completamente. O roteiro tem problemas quanto ao ponto de foco, parecendo focar no triângulo amoroso envolvendo Sylvie (Elle Fanning), para depois abordar outras temáticas, como a sua visão da música, as suas pretensões quanto à carreira e mesmo questões existenciais. A despeito dessa confusão, o fio condutor surge quando a fama se torna não uma realização, mas uma ressalva em sua vida, dialogando com a sua visão quanto à música, fugindo de rótulos e definições fixas. Com isso, o final se torna intenso e, à sua maneira, explosivo, refletindo parte daquilo que Bob Dylan, o músico, graças à sua fama, conseguiu representar na música, quebrando convenções, expectativas e interesses alheios para um bem maior, a sua arte.
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Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.